São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 1994
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Coincidências e retaliações

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Coincidência é um vocábulo de muitas acepções. Literalmente, significa "cair sobre o mesmo lugar". Hoje com frequência é usado para descrever dois acontecimentos simultâneos, no mesmo local ou não, ou em sucessão imediata, mas necessariamente sem relação de causa e efeito.
Exemplos recentes de coincidência foram apontados por esta Folha. Onde vai Fernando Henrique em campanha, vai o angelical ministro da Fazenda, logo em seguida ou pouco antes, falar da salvação pelo Plano Real. Pura coincidência.
E, como argumenta devastadoramente Janio de Freitas, para onde FHC faz promessas (Sobral no Ceará e Contagem em MG) e conduzem a campanha prefeitos do PSDB, são remanejadas de outros municípios as verbas destinadas ao desenvolvimento social, pelo cândido ministro do Planejamento. Coincidência, nada mais que coincidência. Com isso o leitor já sabe qual é o sentido desse vocábulo.
Vamos agora falar sobre outro termo, igualmente elusivo. "Retaliação" deriva da antiga expressão "pena de talião" e quer dizer "retribuir, com dano igual, uma ofensa recebida".
Por exemplo, há duas semanas, um desabusado artigo intitulado "As metamorfoses de Fernando Henrique" foi publicado nesta Folha, por mim. Houve reações previsíveis. Eu ficaria ofendido, sim, se todos esses que me criticaram comigo concordassem.
Mas, além desses, um outro acontecimento ocorreu, este último inesperado. A Codetec (Companhia de Desenvolvimento de Tecnologia), empresa que criei há quase 20 anos com a finalidade de gerar e transferir tecnologia para a empresa nacional, teve dois contratos negados.
Em licitação pública, esses projetos haviam sido aprovados e escolhidos pela comissão competente e classificados em 2º e 9º lugares entre 69 propostas. Todos os quesitos explicitados no edital de convocação foram satisfeitos.
A agência governamental que, após a minha análise do candidato do governo, negou a contratação fora escolhida como mera repassadora de recursos. Com isso também desmoraliza a organização técnico-científica que julgou e aprovou as propostas.
O que há de mais repugnante nessa retaliação ou coincidência é a implícita covardia. O ofício que proclama o "indeferimento" é datado de 14 de junho, mas afirma que a decisão é de 13 de abril. Teriam demorado dois meses para datilografar um ofício. Isso seria muita incompetência burocrática.
Durante a ditadura militar enfrentei situações semelhantes. Contratos de pesquisas e desenvolvimento da mesma empresa foram cortados. Mas havia um elemento de virilidade na briga de então, apesar da truculência.
Um diretor miliquento da Cesp (Companhia Energética de São Paulo) me disse diretamente que, se eu continuasse com minhas "fúteis e injustas agressões ao programa nuclear", os contratos com o governo seriam sustados (e também com as empresas privadas).
A mesma advertência foi feita ao principal executivo da Codetec pessoalmente pelo ministro de Minas e Energia da época. A Codetec em poucos meses ficou reduzida a um engenheiro, uma secretária em tempo parcial e um office-boy. Naquele caso foi retaliação. Tenho certeza que não foi coincidência.
No caso presente, deixo por conta do leitor. Coincidência ou retaliação? Lembro apenas que as regras que regem o programa que fornece os recursos exigem que 30 dias após a aprovação do projeto seja assinado o contrato.
Mas, vão argumentar, e o terceiro projeto? Neste a Codetec obteve o 1º lugar na concorrência pública. E com isso a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos), órgão ligado ao Ministério de Ciências e Tecnologia, fez uma proposta. Peter Drucker não acreditaria.
Durante 45 anos, Drucker estudou o Japão. Lá atuou como consultor de empresas e do governo. Em um de seus últimos artigos afirma que todos esses mitos que procuram explicar a esmagadora superioridade do Japão na competição internacional por mercados pouco ou nada têm a ver com questões culturais, tais como disciplina, nacionalismo, organização empresarial, masoquismo etc. (o masoquismo é por minha conta).
O sucesso japonês seria antes consequência de uma circunstância trivial, ou seja, a baixa taxa de juros de que usufruiu o empresário japonês historicamente.
De acordo com Drucker, ninguém com uma taxa média de juros em torno de 11% ao ano, como pagavam os empresários norte-americanos e europeus, poderia concorrer com uma produção sustentada com taxas próximas a 4%, como era o caso japonês.
Pois bem, a proposta da Finep também fala em 4%, mas não sobre o valor do empréstimo, mas sobre o faturamento global. O empréstimo é apenas para equipamentos para desenvolvimento do projeto. Sobre o faturamento, 4% corresponde a aproximadamente 30% ao ano, em termos reais, sobre o valor do empréstimo. Peter Drucker não acreditaria. Mas isto não é nada.
O equipamento permaneceria propriedade da Finep. Mais ainda, o dinheiro emprestado não pertence à Finep. Mas o retorno seria da dita cuja. Não é isso que chamam apropriação indébita? A desculpa é que estariam se remunerando dos serviços de administração.
Os três projetos se referem a desenvolvimento de uma série de medicamentos necessários à farmácia popular brasileira cujos preços os tornam inacessíveis aos cidadãos de baixa renda.
Ninguém contesta a competência da Codetec no campo, pois processos para produção de 80 fármacos já foram desenvolvidos, dos quais 24 estão comercializados.
Além do mais, a avaliação técnica e a pertinência social foram avaliadas por consultores "ad hoc" e comitês de alto nível e oficialmente aprovados.
Com decisões dessa natureza a Finep presta inestimável serviço ao Cartel Transnacional da Indústria Farmacêutica. Concorre para sustentar os preços elevados de medicamentos, pois impede a eventual concorrência devida a produção em território nacional, e a introdução de genéricos.
Essa decisão da Finep está coerente com a atual proposta de legislação patentária imposta ao Brasil pelo Departamento de Comércio dos EUA e lubrificada por FHC. Mais uma dessas coincidências.

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