São Paulo, quinta-feira, 30 de junho de 1994
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Roma atrai 'bocas-livres' como um ímã

ALAN COWELL
DO "TRAVEL/NEW YORK TIMES"

O verão está chegando. Está no ar, nas ruas, nos sapatos e nas bainhas das saias. O verão está chegando em Roma e isso é terrível, porque quando chega o verão também chegam as visitas.
Não estou falando de visitas do tipo papai, mamãe ou aquele velho amigo que pescava comigo na infância.
Mas daqueles que decidem reencarnar amizades, há muito mortas, como se fossem um vínculo permanente, assim que descobrem que seu endereço não é mais uma caixa postal, cheia de teias de aranha, num lugar que nem Indiana Jones visitaria.
Que seu endereço agora é em Roma, a mágica Roma, onde os hotéis são tão caros.
Desde que mudei para Roma, descobri qual é a força que dirige a flutuante população mundial de visitas não-convidadas: a popularidade do potencial anfitrião cresce em proporção direta à sua proximidade com o Coliseu.
Em outras palavras, aquele primo em quarto grau que você não vê há séculos (e que, com sorte, nunca mais verá), que nunca escreveu nem um postal no tempo que seu pseudônimo era "Solitário em Lusaka" ou "Catatônico no Cairo", de repente explode em vigor epistolar, quando você muda para Roma. Geralmente, com o propósito de anunciar sua chegada iminente.
Às vezes não é nem seu primo. Na verdade, não tem que ser primo de ninguém, embora alguma nebulosa evocação de laços familiares ajude a explicar por que você um dia acorda e descobre um alienígena em sua banheira.
Vamos tomar como exemplo S., amigo íntimo de um conhecido meu da Cidade do Cabo. Esse conhecido, como vim a descobrir, era de alguma forma relacionado com um primo em segundo grau de minha mulher, que mora em Roma.
Por incrível que pareça, esta é uma história verdadeira.
S. chegou com uma mochila, recomendações do tal primo em segundo grau, grande apetite e pouco dinheiro.
S. ficou –na lavanderia, no sofá, onde desse–, comendo, saindo e voltando às vezes na alta madrugada, quando as únicas outras criaturas acordadas na nossa parte de Roma eram as gaivotas, os vagabundos e gente como S., que vive em sofás e lavanderias.
S. passava os dias em lânguida recuperação, com incursões ocasionais num turismo leve e em estudos arquitetônicos, dependendo do brilho do dia.
S. ficou até ser convencido a se mudar para a casa do primo de minha mulher, onde sua odisséia terminou porque, na hora das gaivotas e dos vagabundos, ele chegou em casa com um amigo que não era, de maneira nenhuma, o amigo íntimo da Cidade do Cabo.
S. cortou, assim, os tênues laços familiares e, desta forma, infringiu a única cláusula favorável ao anfitrião em toda a Carta Universal dos Bocas Livres: "Não exagere".
Histórias como esta, imagino, não despertam muita simpatia. Bem, dizem as outras pessoas, você mora em Roma, passeia pelas ruelas históricas, consome à vontade lagosta com "linguine", se delicia vendo as fontes que refletem os raios do sol e gerânios nas janelas de pátios escondidos, tropeça em Caravaggios nas calçadas e enche seu armário de gravatas Ferragamo –você merece os `bocas-livres'.
Não é justo.
Para começo de conversa, os Caravaggio estão em galerias e as "linguine" vêm com camarões quando acaba a lagosta. E, como todo romano sabe, não se pode encher um armário com gravatas Ferragamo porque precisa sobrar espaço para os ternos Armani e os sapatos Gucci.
Não é justo porque se torna impossível convidar amigos de verdade para visitas, devido ao número de conhecidos de primos distantes que fazem fila para um lugar no sofá.
Não é justo para com os países que os `bocas-livres' não aproveitam, como se aqueles lugares só tivessem a oferecer misteriosos problemas estomacais.
Mais que tudo, porém, não é justo por causa da suposição de que uma pessoa é o lugar onde ela mora.
"Quando morei em Roma", diz um colega, "foi a única vez na vida em que tive visitas sem parar. Mas quando mudei para Varsóvia ...".
É verdade que algumas visitas chegaram a passar por outros lugares onde morei nos meus 20 anos de correspondente estrangeiro. Houve passeios ocasionais a Ancara (Turquia) e LusaKa (Zâmbia), principalmente de familiares preocupados com a falta de notícias.
E muitas pessoas foram parar em Johannesburgo, mesmo nos dias do apartheid, com a desculpa de que, na verdade, estavam em trânsito para discutir um projeto de desenvolvimento na Suazilândia e, sem saber bem como, acabaram caindo em algum lugar entre a piscina e a quadra de tênis.
Mas Roma é um caso à parte. "Ah, você mora em Roma agora. Precisamos visitá-lo", dizem, sugerindo uma intimidade até então muito pouco cultivada."Precisamos"? "Precisamos" por quê?
Estas mesmas pessoas costumavam dizer: "Você está em Beirute agora? Bem, mantenha a cabeça abaixada e não deixe de telefonar, se sair vivo dessa."
A súbita popularidade depois de passar anos na lista dos intocáveis parece atingir muitas pessoas com a sorte (e a resistência a abusos) de morar em Roma.
São pessoas que passam a aguardar ansiosamente o inverno porque é a única época do ano em que não precisam entrar na fila para usar seu próprio chuveiro.
Nas últimas semanas, à medida que a elevação da temperatura acaba com esta abençoada solidão, jantares pós-hibernação na casa de amigos são acompanhados por uma interminável sequência de apresentação de visitas –dentistas, pesquisadores, parentes e desconhecidos também.
Estes são os sinais mais evidentes da invasão. Mas há intromissões mais sutis, como a pergunta que surge do nada durante um telefonema. "Como está o tempo aí?" se traduz por "Tem uma cama sobrando por um mês ou dois?" "Chovendo sem parar" se traduz por "Não".
Daí pode vir o "Você precisa vir nos visitar em Bagdá. Temos espaço de sobra", que quer dizer "Muita ingratidão de sua parte não retribuir nossa oferta de hospedagem com a sugestão de que vocês podem ir para o quarto das crianças e nos ceder seu próprio quarto, com berços portáteis para os trigêmeos".
Como ex-residente do Cairo, que já ligou para amigos em Roma e Viena, para arrancar deles ofertas de hospedagem, tenho vasto conhecimento dos truques dos `bocas-livres'.
A correspondência também tem que ser fiscalizada. "S. contou outro dia que você tem um apartamento adorável, com ótima localização", diz aquela carta gorda, cheia de novidades, do tipo "vamos pôr em dia os últimos dez anos".
Isso depois de se ter ultrapassado a barreira de selos exóticos de lugares como Bulawayo ou Minsk.
"Por falar nisso", prossegue a carta, "devemos passar por aí em junho, só nós quatro, e pensamos ...". Claro que ninguém –ou melhor, quase ninguém– quer passar uma impressão de mau anfitrião. De jeito nenhum.
E todo mundo –ou melhor, quase todo mundo– sabe que a espécie mais repelente de expatriado é aquela que, ao adotar um lugar como sendo sua casa, tenta impor um monopólio sobre ele, promovendo uma ação de retaguarda para impedir que outros estrangeiros tenham acesso a seus exclusivos Caravaggios e a suas exclusivas gravatas Ferragamo.
A questão não é essa. A questão é: se todos os caminhos levam a Roma, será que têm que levar justo ao meu sofá? Não poderiam levar àquela simpática pensãozinha logo ali na esquina?
Principalmente agora que a lavanderia já está reservada pela maior parte do verão –por S. e um ou dois primos distantes?

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