São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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A grande transformação

A pós-modernidade redescobre Karl Polanyi

CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A economia política está ligada à idéia de previsão de comportamento dos agentes econômicos e, consequentemente, à idéia de planificação. Mas, neste final de século, assiste-se ao declínio das várias concepções de mundo que implicam em prefiguração do futuro.
A crise da filosofia da história decorre da multiplicidade de crises por que vem passando a humanidade, quando a história parece sem "plano", ou finalidade, e a ciência, que não pode predizer de maneira exata a evolução dos sistemas complexos, entra em decadência junto com o ideal da planificação. Este mesmo ideal, porém, é parte do problema, pois integra o complexo mitológico dos séculos 19 e 20, sobre o qual se apoia o desenvolvimento da economia política.
Neste quadro de fragilidades é extraordinário que a crítica pós-moderna ainda não tenha descoberto Karl Polanyi que, morto há 30 anos, talvez tenha exercido para a economia o mesmo papel que Nietzsche para a filosofia, quando este enfatiza o caráter arbitrário das estruturas gramaticais de argumentação e retórica.
A economia de Polanyi mostra a mesma arbitrariedade na maneira de apreendermos o mundo da produção e do consumo. Mas quando olhamos para trás, o que a historiografia econômica nos informa é que talvez Keynes seja o último grande formulador na disciplina, pois o pensamento original de Polanyi sequer é reconhecido como pertinente a ela, sendo confinado no domínio exótico da antropologia.
Ora, o movimento de expulsão de sua obra do "logos" da economia não afeta nem a originalidade nem o impacto de seu pensamento na história das humanidades. Devemos a Karl Polanyi, por exemplo, a demonstração de que a economia política é um pensamento datado pelo século 19, expressão do capitalismo nascente que necessitava instituir o fato econômico como instância autônoma, capaz de dirigir ou determinar a vida social. Assim, rigorosamente, de Adam Smith a Marx o que vemos surgir é uma ontologia do homo economicus.
É certo que a crítica a esta maneira de reificar a vida econômica já havia sido feita nos anos 20 e 30 por autores que, com base em dados antropológicos, refutaram o universalismo do cálculo econômico voltado para o lucro, tal e qual perseguido pela economia de mercado. Mas ninguém antes de Polanyi levou a cabo pesquisa histórica que desvendasse como esta categoria fundante do livre-mercado veio à luz.
Seu }The Great Transformation (1944) é uma original demonstração de como o livre-mercado e a economia política simplesmente não existem fora dos marcos estreitos do capitalismo concorrencial e, pois, de como a crise de 1929, as duas guerras mundiais, o fim do padrão-ouro e do livre mercado desnudaram o caráter retórico da economia política.
Para Polanyi, a possibilidade de uma ciência econômica supõe o movimento crítico que confine a economia em seu tempo, reduzindo sua validade universal. Supõe ainda que acompanhemos, na história, o dramático desenraizamento da esfera econômica das demais dimensões da vida social (como o parentesco, a religião, o status social, etc), pois o contraponto que propõe para a economia política exige que tomemos o móvel da ação social como de natureza cultural ampla, isto é, que consideremos a "incrustação" da economia nas demais esferas institucionais.
Ao contrário, o surgimento da "economia" como usualmente a entendemos pressupõe a especialização das ações humanas num processo que destaca na vida social a essência da racionalidade, tomada como uma maneira de dispor do tempo e energia, de forma a que um máximo de ganhos seja obtido fora da relação homem-natureza. A "economia" é simplesmente o "locus" dessa ação.
Ao tomar a vida social em seu conjunto, e não apenas pelo "econômico" nela imbricada, Polanyi desenvolveu três modelos de integração para analisar as sociedades concretas: a reciprocidade, a redistribuição e o próprio mercado, que podem coexistir apesar da eventual dominância de um deles. Nunca antes foram estas modalidades consideradas como sistema, abarcando todas as possibilidades integradas da sociedade; ao contrário, um certo evolucionismo presente no pensamento do século 19 estabeleceu que o modos não-capitalistas de vida eram, sim "pré-capitalistas", isto é, tendentes a se diluirem no mercado.
No livro }Trade and Market in the Early Empires: Economies in History and Theory (1957), Polanyi caminha em sentido contrário a esta tradição da historiografia econômica. Nele se discute tanto o "lugar" da economia no edifício social quanto situações específicas: a antiguidade babilônica e grega, os portos de comércio dos impérios africanos e americanos; e se avança no enfoque institucional –a economia como processo instituído, a questão do excedente, o mercado como realidade teórica e histórica.
Esta pesquisa correspondeu à "busca de um novo começo", um ponto de partida próximo de um "zero" teórico para a economia. Só dentro de um esforço dessa natureza pode o leitor de hoje compreender a originalidade da análise do que Polanyi chama de "desincrustação" da economia, fruto da mercantilização da terra e do trabalho sob o capitalismo, processo este correspondente à barbárie moderna.
Para ele, o fim deste processo de barbarização, que destrói tanto o homem quanto o meio ambiente, só será alcançado pela ação consciente em direção oposta, isto é, pela reincrustação ("re-embedding") das ações econômicas no tecido social íntegro, projeto perseguido tanto pelo socialismo quanto pelo "welfare state". Deixada por si só, a sociedade regida pelo mercado pode degenerar em formas conhecidas, como o fascismo.
Ora, recentemente causou furor o livro }O Colapso da Modernização, de Robert Kurz, ao procurar demonstrar, historicizando o "socialismo real" e contrariando o modo keynesiano de interpretar a economia moderna, como "a falha do Estado e a falha do mercado tornam-se idênticas porque a forma de reprodução social da modernidade perdeu completamente sua capacidade de funcionamento e integração".
Esta contradição, Polanyi já havia apontado de forma clara. "A dinâmica da sociedade moderna foi governada por um duplo movimento: o mercado se expandia continuamente, mas esse movimento era enfrentado por um contramovimento que cerceava esta expansão em direções definidas. Embora tal contramovimento fosse vital para a proteção da sociedade, ele, era, em última análise, incompatível com a auto-regulação do mercado e, portanto, com o próprio sistema de mercado".
Em outras palavras, a dialética Estado-Mercado imprime na sociedade uma dinâmica dissolutiva na medida em que a integração que o Estado persegue se esvai no movimento concorrencial do mercado; inversamente, a "livre concorrência" encontra obstáculos intransponíveis nas leis impostas pelo Estado.
A passagem anterior não é lembrada apenas para mostrar o pioneirismo de Polanyi, mas, antes, para evidenciar como a economia de livre-mercado é uma impossibilidade histórica e, ao mesmo tempo, uma arquitetura social anti-humana. O esforço consciente para "humanizá-la", Polanyi vislumbrou em Marx, mas mesmo assim como tentativa malograda, devido à adesão muito estreita de Marx às teorias ricardianas, impedindo-o de perceber que o econômico só determina a vida social sob a particular forma de civilização industrial.
Por isso, não acompanhou Marx no conceito de modo de produção, e em sua versão pessoal da "crítica da economia política" procurou ficar distante daquele problema nodal da economia política novecentista: o determinismo econômico. Talvez em razão deste projeto, demasiado heterodoxo, tenha Polanyi permanecido em segundo plano na cidadela da economia. Afinal de contas, até os dias de hoje, de que valeria uma ciência incapaz de identificar as "leis de transformação social"?
Mas se não há "determinismo econômico" no que consiste, então, a "Grande Transformação" –título de sua obra mais prestigiada? Corresponde, sim, ao esgotamento de um ciclo histórico que projetou o livre-mercado como descolado da sociedade e passou a exigir o "keynesianismo", ou o capitalismo de Estado, como forma de impedir a completa ruptura. A "grande transformação", portanto, é a crise inconclusa a que somos arrastados pela irracionalidade do mercado auto-regulado e que não deságua no fim do capitalismo.
No centro da questão está, portanto, o Estado. Este não só ajudou no parto do capitalismo, através da criação artificial do mercado de trabalho na Inglaterra do Speenhamland Act (1795-1834), como também se fez presente como "mediador" sempre que foi imprescindível impor limites à exploração e amparar o trabalhador. Assim, em termos rigorosos, o livre mercado, que é o objeto de que se ocupam os economistas, e a partir do qual fazem as generalizações impróprias para toda a história humana, é bastante bem datado: de 1834 à crise de 1929. E Polanyi pretende mostrar que, para compreender tanto o nascimento do livre mercado quanto o seu sepultamento keynesiano, o Estado é nuclear.
Ora, a idéia de que ação do Estado na economia se faz desde o nascimento do livre-mercado contrapunha Polanyi, simultaneamente, tanto aos seus contemporâneos da escola austríaca –Friedrich Hayek, Lionel Robbins e Von Mises– quanto aos marxistas da Segunda Internacional que restringiam a necessidade da intervenção estatal à fase monopolista do capitalismo.
Mais recentemente, Polanyi volta a ser apreciado nos círculos acadêmicos. Este renascimento do interesse por um pensador original, ainda que não ganhe a cidadela da economia, propõe o humanismo como projeto para a ciência, ao tentar confinar no tempo a coisificação das relações sociais. Mas trás à baila, também, um questionamento incômodo para a modernidade: afinal, se não existem "leis de transformação social", se não há um determinismo a ser domado e direcionado, como garantir que o resultado das ações humanas, coletivas ou isoladas, não nos levará direto à barbárie? Neste sentido, Polanyi é um precursor das dúvidas que animam o pensamento pós-moderno.

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