São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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Economia será superestrutura

Mudanças culturais importam mais que a lógica

GILSON SCHWARZ
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

A ciência econômica nasceu do progresso material. As trocas, a produção, o consumo, a acumulação, o imperialismo e as inovações tecnológicas definiram nos últimos três séculos os limites de uma nova objetividade. A economia criou um campo de coisas, inanimadas regidas por princípios lógicos e mecanismos impessoais. O cálculo acabou se impondo contra a fé e os dogmas da Igreja e do Estado. Muitos economistas chegaram a crer, à esquerda e à direita, na descoberta da infraestrutura da vida coletiva.
A economia do futuro, assim como a ciência que seguirá seus passos, será menos mecânica. No lugar da lógica implacável, sistemas de regras falíveis. Em vez de uma objetividade que sobrevive à coletividade, haverá o impacto crescente de infraestruturas que são antes de tudo superestruturas. Economia e cultura estarão mais próximas.
Regulação, institucionalismo, evolucionismo, economia epistêmica, desequilíbrio, instabilidade, cultura organizacional, formas coletivas de aprendizagem e conhecimento, esses são alguns dos rótulos que já estão surgindo para definir as novas fronteiras. Já não se poderá discutir economia supondo dadas as regras, como se houvesse um conjunto pressuposto de regularidades com base nas quais o bom observador elabora uma lógica, um cálculo e uma política econômica neutra. Cada decisão exigirá uma tomada de consciência de formas de vida e padrões culturais fora dos quais nenhum mecanismo faz sentido.
As fronteiras entre micro e macroeconomia também serão progressivamente revertidas. Há um tema que ocupa cada vez mais tempo dos teóricos da economia: a relação entre a constituição de organizações e o tipo de conhecimento dos agentes envolvidos no seu funcionamento. Definir uma organização (uma empresa, uma instituição pública, um consórcio setorial) será antes de tudo refletir sobre um conhecimento comum.
A economia reencontra, assim, um tema caro à filosofia política clássica, seu berço, de onde saiu rumo a uma autonomia que agora se desfaz. É o tema das representações coletivas: saber comum, costume, norma, cultura, linguagem, paradigma, regra.
Discute-se cada vez mais as regras e culturas organizacionais como instâncias relevantes da eficiência técnica. Microeconomia? Desde o começo do século o economista John Maynard Keynes, tido e havido pai da macroeconomia, insistia no desmascaramento das chamadas "rules of the game", as regras do jogo pressupostas pelos adeptos do padrão-ouro, regime monetário que coroava a supremacia econômica inglesa.
E ainda antes do Keynes houve Bagehot, o fundador da revista "The Economist", que denunciava, ali onde se imaginava a mera aplicação metódica e objetiva de princípios científicos, apenas a operação subjetiva e discricionária do poder do Banco da Inglaterra. Ou seja, desde o final do século passado há economistas atentos à incerteza e à instabilidade de um sistema elevado, nas teorias, à condição de mecanismo universal.
Marx decerto criticou essa tradição, fez uma teoria da crise capitalista. Mas não poderia haver maior evidência da incompletude das "leis" elaboradas por Marx que o próprio debate entre os marxistas que, até as primeiras décadas do século 20, ainda debatiam o como, o porquê e o quando das crises capitalistas.
Marx acabou vulgarizado também, virou o apóstolo do determinismo da infraestrutura. Virado ao avesso, talvez se revele outra vez profeta - se se entender que a infraestrutura fundamental, hoje e no futuro, já não será determinista nem mecânica.
A tomada de consciência do peso decisivo da superestrutura já começou, detonada por dois acontecimentos decisivos do século 20: a desestruturação dos estados nacionais e o curto-circuito "fin de siècle" entre socialismo e capitalismo. A ciência econômica do futuro vai dar muita risada da Guerra Fria.
Nem poderá ser uma ciência exclusiva e estritamente econômica. Serão cada vez mais frequentes e diversificados os diálogos entre a economia, a antropologia, a semiótica, a matemática e a teoria do conhecimento. Na era da globalização, torna-se necessário o trabalhador multifuncional e o pensamento multidisciplinar.
A economia, que nasceu como especialização suprema num mundo onde o progresso criava especializações extremas, enquanto muda vai antecipando uma nova época. Mas no final das contas a economia será, como afinal sempre foi, uma filosofia prática do futuro.

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