São Paulo, domingo, 3 de julho de 1994
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O real na verdade

SÉRGIO ABRANCHES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Plano Real, na verdade, não é eleitoreiro. Seu cronograma tem sido técnico, não político. Se fosse diferente, a nova moeda já estaria em nossos bolsos há mais tempo, para que chegássemos às eleições longe da confusão sobre a "verdadeira" inflação no real. Mas o plano será uma peça do processo eleitoral. Criará um ponto novo de clivagem: anti e pró-real.
É um plano com chances concretas de dar certo. Mais chances do que as tentativas anteriores. Primeiro, porque pode se valer dessas experiências fracassadas, procurando evitar os mesmos erros. Segundo, porque também pode se valer da experiência com âncora cambial do Plano Cavallo, evitando os erros e excessos, que provocaram algumas sequelas importantes na economia argentina. Terceiro, porque sua formulação é melhor do que as demais.
Não é um plano tipo CIP/SUNAB (Conselho Interministerial de Preços/Superintendência Nacional de Abastecimento), de congelamento e controle de preços, como os anteriores. É um plano tipo Banco Central, em que fundamentais serão o câmbio e a emissão de moeda. O Banco Central está técnica e administrativamente mais preparado para exercer controles do que as burocracias dos preços.
Nos outros planos, o déficit público não era levado em consideração. Agora, as contas governamentais têm apresentado superávit primário há três anos e o Fundo de Emergência oferece uma ponte segura até as pretendidas reformas do ano que vem.
O quadro internacional nunca foi tão favorável. Os outros planos foram feitos em plena crise da dívida. O país era dependente das pressões internacionais. Precisávamos do FMI (Fundo Monetário Internacional), que nos impunha condições e restrições. Estávamos exportando poupança, enquanto postergávamos o enfrentamento de nossos problemas sociais e sucateávamos nossa infraestrutura.
Hoje, a dívida está negociada. Não houve acordo com o FMI, nenhuma condicionalidade nos foi imposta. Os termos da negociação são melhores do que os obtidos pelo México e pela Argentina. Não estamos submetidos a qualquer pressão internacional relevante. As reservas são oito vezes maiores do que a média de divisas acumuladas existentes no período dos outros planos. Nos anos 80, não entrava capital. Só saía.
No ano passado, entraram US$ 25 bilhões. Este ano, apesar de toda a incerteza associada à disputa eleitoral e à reforma monetária, já entraram US$ 8,5 bilhões e o saldo continua positivo, acima de US$ 4 bilhões. Com a estabilização e um governo equilibrado, o Brasil será um dos principais destinatários do fluxo de capitais no mercado financeiro internacional. Ser competitivo na captação de capitais, hoje detentores de grande mobilidade e flexibilidade, é uma condição absolutamente necessária para um país poder crescer e se manter competitivo no mercado mundial.
A economia brasileira era fechada, hoje está aberta, com tarifas efetivas médias de 14,5%. A indústria não foi sucateada, apesar da gritaria dos cartórios industriais, alimentados pelas reservas de mercado, tarifas proibitivas e barreiras não-tarifárias, tudo obtido por meio de uma promíscua aliança entre partes do setor privado e a burocracia estatal.
Ao contrário, a indústria brasileira está respondendo ao desafio da abertura com rápida modernização de seus padrões gerenciais, aumento efetivo e definitivo da produtividade, controle de custos e melhoria radical da qualidade. A maioria das empresas brasileiras, que se desvencilharam da cumplicidade nacional-estatista, nada tem a ver com as estruturas que operavam nos planos anteriores. Estão muito mais preparadas para a estabilidade hoje do que há cinco ou seis anos atrás. O desafio principal, após a estabilização, será evitar que esta modernização, ao entrar na fase tecnológica, produza ondas de desemprego como as observadas na Europa. Para isto, será preciso que a economia volte a crescer, com estabilidade.
A abertura faz muita diferença. Os oligopólios continuam aí, muitos ainda cartelizados, mas já não são todo-poderosos. Não estão mais por trás das muralhas da autarquia. A ameaça da competição dos produtos importados ainda é pequena –sobretudo porque só recentemente saímos da recessão e há ainda muita incerteza– mas já provocou muita mudança. Basta ver o que está acontecendo na indústria automobilística. Na economia fechada, não competia. Era um grande e estável cartel. Com a entrada dos carros importados, não só teve que abandonar os modelos obsoletos que impunha aos consumidores, como as empresas passaram a competir entre elas. A concorrência internacional aumentou a concorrência interna, com benefícios para o consumidor.
A defasagem cambial é pequena, o que aumenta a resistência de nossas exportações, permitindo que a âncora cambial seja usada com a força necessária para manter a estabilidade e ajudar no processo de "desintoxicação", libertando os brasileiros do vício da indexação. O dólar está se desvalorizando frente às demais "moedas fortes". Isto mantém o preço de nossas exportações competitivo, apesar do câmbio fixo.
A única ameaça que vem do cenário internacional é o desafio competitivo mundial. Uma ameaça que podemos transformar em oportunidade para crescer e ganhar mais peso no mercado mundial. Os EUA já saíram da recessão, Alemanha e Japão começam a dar sinais de recuperação. Os mercados emergentes, entre os quais está o Brasil, disputam posições favoráveis na nova ordem comercial, abertas pelo novo paradigma industrial. A internacionalização e a "terceirização global" abrem novas oportunidades para países com capacidade econômica, intelectual e gerencial para oferecer produtos e serviços competitivos, fazendo uso inteligente das máquinas, da informação e do conhecimento.
A estabilização, hoje, é um problema doméstico. O Brasil tem toda a liberdade para decidir. Se a fizermos, seremos competitivos. Se não, perderemos mais espaço. A entrada do real em julho derruba a inflação. As condições internas e externas favorecem o processo de estabilização. A inflação será baixa e ficará assim por vários meses. Mas não haverá estabilização em definitivo, se o Plano Real não for mantido em 95 e complementado corretamente.
Qualquer que seja o governo, se quiser a estabilidade sustentada, com crescimento sustentável, deveria respeitar os fundamentos do plano e completá-lo com coerência. É uma vantagem, cujo desperdício seria uma tolice e uma irresponsabilidade. Não parece que haja esta disposição entre os principais candidatos à Presidência da República. Todos estão contestando o real.
Nas eleições, alguém pregará no sentido contrário ao senso popular. Se a inflação não cair, FHC será cobrado. Se cair, a estabilização desafogará os orçamentos familiares e quem ficar contra o plano, estará contra o senso.

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