São Paulo, segunda-feira, 4 de julho de 1994
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Vocalistas se vendem como intérpretes

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Quando pareciam ter as carreiras definidas (quando não sepultadas), quatro manjados e trintões homens de frente de grupos brasileiros dos anos 80 se lançam como reis da voz.
Carlos Fernando, do grupo de mauricinho-cool Nouvelle Cuisine, lança "Qualquer Canção", dedicado à obra de Chico Buarque. Também inaugura o selo Dubas, do letrista Ronaldo Bastos.
Nasi prossegue na banda IRA!, a sorridente ditadora do rock honesto paulistano. Mas abre um nicho visceral com "Nasi e os Irmãos do Blues", em que canta blues eletrificados em inglês e português.
Tony Platão figura no seu primeiro álbum solo com pose de intelectual. Brotou para o anonimato bem antes de Gabriel, o Pensador, nos idos de 1988. Foi vocalista da Hojerizah, uma banda utópica, que tentou diluir Titãs, como se diluir a diluição fosse possível.
Renato Russo não deseja ser apenas a fada madrinha, despachante e proprietário da banda angelical Legião Urbana. Agora homenageia a comunidade gay de informações em "The Stonewall Celebration Concert".
O resultado dos quatro trabalhos poderia ser pior. Os vocalistas arrependidos sacodem o pó dos vícios contraídos ao longo de uma década - a chamada "década perdida" do jazz e do rock brazucas- e buscam vias novas.
Os recém-nascidos intérpretes respondem com egocentrismo ao desafio. São todos donos de vozes fortes de barítono. Cada um foge à sua maneira do estilo que ajudou a firmar e a soçobrar.
Carlos Fernando é um ótimo intérprete. Convence trocando o jazz pela bossa nova. Se falha nos graves e despenca nos glissandos, imposta bem a voz.
Torna rebuscadas muitas das 14 canções que escolheu da obra de Chico Buarque. Mesmo assim, explicita pulso melódico e harmônico de um compositor louvado mais por causa dos versos.
O cantor tem a ajuda do guitarrista e violonista Toninho Horta, que fornece harmonizações e sequências cromáticas não ponderadas por Chico.
O trabalho é vincado pelo rigor. Pena que a exatidão nem sempre seja levada a termo. O samba "Quem Te Viu. Quem Te Vê" é citado no livreto do CD como sendo de 1976. Errado. Chico o lançou em 1967.
As melhores faixas são as das canções lentas. Carlos Fernando faz uma versão introspectiva de "Bastidores" e a leitura bossanovista de "Vitrines". Vinga o projeto porque personaliza uma busca de referências no passado.
O mesmo pode ser anotado em relação a Nasi. Assessorado por um septeto competente, ele dá conta de nove clássicos e resolve um dos problemas de interpretação de blues brasileiro: trazer para o português a mesma carga do original em inglês.
Nasi traduz "baby" por "nega" (Erasmo nos anos 60 preferia "meu bem") e converte no estilo roufenho de Chicago a canção soul "Sofre", de Tim Maia. Um CD que prima pela decência.
Já Tony Platão nunca deveria ter saído da clonagem de Sílvio Brito. Perpetra uma popice boba. Em busca de pais espirituais, encontra "Partido Alto", de Chico Buarque. Faz do samba uma deixa para "funkear" horrivelmente.
Platão está mais para Lulu Santos do que para o filósofo grego que lhe dá o nome artístico.
Mas a revelação maior se dá com Renato Russo. Sem as canções messiânicas do Legião Urbana, ele desabrocha para os gorjeios. É o mais assumidamente gay dos discos já concebidos em território nacional.
Ouvi-lo demanda alguma perseverança. Tem 21 músicas em 70 minutos. Renato canta com a naturalidade de um professor de inglês.
São gemas da Broadway, melações de Billy Joel e Bob Dylan e baladas recentes de Tanita Tikaram ("Cathedral Song") e Madonna ("Cherish").
O "gay pride" de Renato marca o encontro público do intérprete com seu eu sonoro oculto.
O timbre limpo, a impostação perfeita e a afinação fazem dele o melhor cantor romântico de sua geração. Em nada lembra o velho imitador de Morrisey que foi à frente do Legião Urbana.

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