São Paulo, segunda-feira, 4 de julho de 1994
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O pão e o homem

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Não é por acaso que o primeiro vilão do Plano Real seja o pãozinho. As padarias ganharam cinco dias para explicar o aumento –fato que deixou o ministro Ricupero e sua beneditina paciência atônitos. Aliás, aos poucos, com a tourada que diariamente enfrenta, o ministro, que já não era lá essas coisas em matéria de visual, está ficando translúcido. Com a entrada da nova safra de hortigranjeiros é capaz de ficar literalmente transparente –se acaso o preço das verduras não baixar.
Admiro sua coragem, sua resignação em tentar salvar nossa economia –uma doente terminal que sobrevive à custa de complicado e oneroso instrumental (ninguém fez a conta do quanto se gastou em material, distribuição, segurança e publicidade do plano).
Foi a primeira vez que vi –sempre pela TV– o ministro irritado. O pãozinho de 50 gramas (acho que é esse o peso do vilão nacional) teve aquilo que estão chamando de aumento abusivo. Para falar a verdade, o povão acha que qualquer aumento é, em si, mais do que abusivo. Desde Cícero que se pergunta: até quando se abusará de nossa paciência e do nosso bolso? Catilina, no caso, é um coletivo que inclui produtores, donos de moinho e, na ponta da corda, padeiros. Já houve plano que teve o chuchu como vilão. Mas não é a mesma coisa. Chuchu –ao que me consta– não é símbolo de nada. Ao passo que o pão é o maior símbolo da condição humana, é a razão do suor em nosso rosto –segundo ameaça do próprio Criador a Adão.
Os plantadores de trigo, os moinhos e as padarias poderão alegar ao ministro –que é homem de religião e cultura– que nem só de pão vive o homem. É um tipo de ameaça equivalente àquela que o Criador fez para Adão: novos aumentos deverão estar a caminho tornando mais problemática nossa capacidade de saciar outras fomes que herdamos do pai comum a partir de sua expulsão do paraíso.
Como se vê, Swift tinha razão quando dizia que tudo o que nos acontece está nas primeiras linhas do Gênesis. Compreendo a irritação do ministro: ele é do ramo.

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