São Paulo, quarta-feira, 6 de julho de 1994
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Aborto e anacronismo da lei

JOSÉ GENOINO

O fato de a Polícia Civil de Campinas ter aberto inquérito e um promotor de Santo André ter determinado abertura de uma sindicância, respectivamente, contra os médicos Aníbal Faúndes, diretor do Centro de Assistência Integral à Saúde da Mulher, e Thomaz Gollop, diretor do Instituto de Medicina Fetal de São Paulo, para apurar casos de aborto de fetos com malformação assumidos publicamente por ambos, mostra o quanto anacrônica é a legislação brasileira sobre o aborto.
Muito já se discutiu sobre o tema: os milhões de abortos clandestinos, os perigos e as mortes de mulheres que se submetem a essa prática, as precárias condições médicas e de higiene em que os abortos são praticados nas clínicas clandestinas etc.
O argumento central na defesa da descriminalização do aborto consiste na tese de que a interrupção da gravidez, respeitados determinados limites, é um direito da mulher ou, no máximo, do casal. Em se tratando de um direito, o Congresso Nacional deveria, simplesmente, reconhecê-lo.
Alguns juristas e estudiosos do assunto enquadram o direito ao aborto nos chamados direitos reprodutivos. Esses direitos envolvem vários aspectos da reprodução humana: o direito ao atendimento pré-natal, o direito à maternidade assistida e digna, o direito à creche, o direito ao planejamento familiar etc.
O direito ao planejamento familiar diz respeito ao direito de decisão de ter ou não ter filhos, quantos serão e quando. A interrupção da gravidez é um recurso, um meio, para garantir esse direito quando todos os outros meios e métodos falharam. Em outras palavras, o aborto é um direito no caso de uma gravidez indesejada, sejam quais forem as motivações: estupro, malformação do feto etc.
O direito ao planejamento familiar é reconhecido, na atual Constituição, no parágrafo 7 do artigo 226: "Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas".
Com base nesse dispositivo constitucional, há os que argumentam que o Estado nem sequer poderia intervir pela via legislativa para classificar o aborto como crime ou proibi-lo.
A partir dessa ótica, a criminalização do aborto pelo Código Penal, que é da década de 40, inatual, portanto, se opõe à atual Constituição.
A afirmação de que o aborto é um direito da mulher implica a noção de que a mulher é um sujeito titular de direito. O direito está aqui vinculado com o conceito de propriedade: cada pessoa humana tem seu próprio corpo como propriedade sua. Cada pessoa tem a posse subjetiva e real de seu próprio corpo. Pode dispor dele segundo sua vontade.
Um direito é uma liberdade que um indivíduo dispõe de autodeterminar-se. A mulher tem o direito, a liberdade, de dispor de seu próprio corpo e dele tem o domínio exclusivo.
O direito ao aborto é entendido ainda como um direito civil. Os direitos civis dizem respeito à personalidade do indivíduo. Neste particular, o Estado deve abster-se frente a esses direitos e, no máximo, reconhecê-los constitucionalmente. O que quer dizer que o Estado tem um claro limite nas questões referentes aos direitos individuais.
Segundo também essa concepção, o Estado não pode criminalizar a prática do aborto, desde que se respeitem os limites interpostos pelas recomendações científicas.
Outro problema relacionado ao aborto é o de que ele diz respeito a uma opção de consciência. A descriminalização do aborto não significa, em absoluto, a sua aceitação por todos os membros da sociedade. Cada um é livre em aceitá-lo ou recusá-lo.
Quem é contra o aborto deve contudo respeitar aqueles que defendem a sua descriminalização e aqueles que optam por praticá-lo. É justamente por ser um direito individual que a legalização do aborto não pode ser submetida a um plebiscito, pois a sociedade não pode julgar e impedir a utilização de um direito individual.
Os que são favoráveis à descriminalização do aborto são unânimes no sentido de que ele possa ocorrer dentro de determinados prazos após a concepção. Com base em estudos científicos, fala-se em dez a 12 semanas.
Deve caber unicamente à mulher (no máximo ao casal), o direito de decidir sobre a interrupção da gravidez indesejada. Vários especialistas observam que, já neste período de tempo, é possível detectar, através de exames de ultra-sonografia, doenças futuras ou uma malformação do feto.
O exemplo mais citado é o da síndrome de Down. Neste caso, caberia unicamente à mulher ou ao casal a responsabilidade de decidir sobre a possibilidade de ter um filho deficiente ou interromper a gravidez.
Nem ao próprio médico cabe este direito. Ele tem, exclusivamente, o dever de informar os possíveis pais sobre as reais condições de desenvolvimento do feto. A rede pública hospitalar deveria ser aparelhada para atender todas as solicitações.
A questão do aborto reclama uma solução séria e urgente do Congresso. O anacronismo da lei que o criminaliza explicita de forma paradoxal a sua hipocrisia: médicos que têm reconhecidas responsabilidades com a saúde da mulher e que se pautam por um comportamento ético, correm o risco de sofrerem um processo criminal. Mas esta mesma lei não alcança aqueles que transformaram o aborto numa indústria e o praticam em condições que põem em risco a vida das mulheres.

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