São Paulo, quarta-feira, 6 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O inocente Bisol

MAILSON DA NÓBREGA

O senador Bisol expôs-se aos adversários e aos maledicentes, que agora o acusam de participar de uma maracutaia no Orçamento da União. Logo ele, um assíduo, combativo e loquaz membro da CPI responsável pelas investigações de estratagemas usados por congressistas para ganhar dinheiro e prestígio à custa dos recursos extraídos dos contribuintes.
Bisol usou os holofotes para anunciar suas descobertas na CPI. No caso da Odebrecht, deu-nos um susto ao insinuar que havia encontrado um mar de lama gerador de uma crise institucional. Ironia máxima, virou alvo dos que buscam aproveitar-se de sua atual escorregadela. Lula veio em defesa do companheiro. Repetiu (quem imaginaria?) um argumento de Collor e espera que o tempo indique ser o senador inocente.
Segundo o Aurélio, inocente pode ser o que não tem culpa, o puro, o ingênuo e até o imbecil. O senador não é imbecil nem ingênuo, atributos que teriam inibido sua ascensão a juiz, respeitado membro do Congresso e figura de renome nacional. Puro igualmente não seria, já que como mortal é um pescador. Resta saber se Lula está certo e o senador não é culpado.
Há vários fatos a examinar.
Primeiro, o senador apresentou emendas ao Orçamento em favor do município de Buritis em Minas Gerais. Sendo representante gaúcho, teria usado a mesma artimanha dos anões do Orçamento, uns colocando emendas em favor dos territórios dos outros.
Segundo Lula, interessa saber se o município mereceria receber o dinheiro. Como ainda não houve investigação para apurar essa dúvida, pode-se presumir que desse erro Bisol é inocente.
Segundo, a verba, destinada a uma ponte, estaria superestimada. O valor chegaria a US$ 75 mil, mas a dotação equivale a US$ 2,6 milhões. Logo, o senador teria imitado o superfaturamento dos envolvidos na CPI. Janio de Freitas invocou o papel relevante do senador na CPI, que torna "inadmissível o seu envolvimento com qualquer emenda orçamentária".
Na defesa de Bisol, informou em sua coluna na Folha (2/07) que o parecer técnico prova existir rasura na emenda. O senador teria sido vítima de uma "armação". Diante da dúvida, pode-se ter novamente a presunção de inocência.
Terceiro, a ponte fica na estrada ERM-06, que liga a cidade de Buritis à Fazenda Sinos d'Água, pertencente ao senador. Diminuirá a distância até aquela propriedade. Tratar-se-ia de ação em causa própria, acusação também feita contra alguns dos envolvidos na CPI.
Bisol disse que seria economicamente inviável transportar produção por essa estrada, que de resto beneficiaria outros fazendeiros da região. Com algum esforço, pode-se admitir que neste caso também se presume a inocência.
Um aspecto igualmente importante nessa querela não foi ainda levantado. Trata-se de saber se é correto ao Congresso aceitar e aprovar emendas para destinar verbas federais em favor de Estados e municípios. Por esse prisma, não interessa investigar se Bisol é culpado ou inocente, mas questionar as intervenções dos parlamentares no Orçamento da União, quase sempre beneficiando obras e ações esparsas, de prioridade discutível, com total desprezo para com a realidade das finanças federais.
No dizer de Nelson Jobim, é isso que transforma senadores e deputados em integrantes de uma grande câmara de vereadores com sede em Brasília, a defender interesses paroquiais em prejuízo do contribuinte e do país.
Grande parte desse processo nasceu (ou renasceu) com a Constituição de 1988, a qual quebrou de vez a União ao transferir montanhas de dinheiro para Estados e municípios sem a correspondente transferência de encargos.
Os principais autores desse desastre fiscal o defendiam com o argumento de que estavam evitando a romaria de governadores e prefeitos em Brasília, de chapéu na mão, para mendigar dotações orçamentárias.
No dizer dos constituintes de 1988, far-se-ia uma descentralização em prol de um novo federalismo e da construção da democracia, idéias contra as quais ninguém pode insurgir-se.
No final, contudo, a União perdeu recursos, ganhou responsabilidades e continuou sofrendo os efeitos dessa romaria, agora em maior grau.
Além dos governadores e prefeitos, os escritórios de lobby, as empreiteiras e os parlamentares, inclusive Bisol, se articulam para incluir milhares de emendas no Orçamento federal. Qual sanguessugas sinistras, buscam tirar mais sangue desse enfermo.
Um exame detido dessas emendas evidenciará que a quase totalidade refere-se a pontes, estradas, asfaltamento de ruas, coretos e outras obras e serviços de competência dos Estados e municípios. A corrupção no Orçamento tem origem a rigor nesse processo. Infelizmente, tem sido impossível dar um basta nisso.
Um passo importante seria proibir constitucionalmente a apresentação de emendas em favor de governos subnacionais e ao mesmo tempo transferir-lhes encargos hoje atribuídos à União.
Eliminar-se-iam fontes de desequilíbrio fiscal e falcatruas. Bisol não precisaria de explicações esfarrapadas, inclusive as minhas, que ou não dissipam as suspeitas ou o fazem parecer um inocente útil.

Texto Anterior: Aborto e anacronismo da lei
Próximo Texto: Direito à vida; Comentaristas esportivos; Parceria na saúde; O real e o português; Estratégia para o real; Direito de fumar; À espera do tetra
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.