São Paulo, quinta-feira, 7 de julho de 1994
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A universidade e o neoliberalismo

JOSÉ GOLDEMBERG

Pode-se concordar com a professora Marilena Chaui quando diz que "há, hoje, na Universidade de São Paulo, três tipos de escolas". O impossível é aceitar que ela tenha razão quando considera que apenas uma delas pode ser considerada "pública".
Não seriam "públicas" as escolas nas quais há uma elevada percentagem de professores de tempo parcial, que não pesquisam ou pesquisam pouco, como as escolas profissionais tradicionais, Direito, Medicina e Engenharia.
Também não seriam "públicas" aquelas que utilizam recursos externos à universidade.
Seriam públicas apenas aquelas faculdades ou institutos onde todos os professores trabalham em tempo integral e não utilizam recursos externos.
Talvez seja necessário lembrar que, desde seu início, no século 11, muito antes do neoliberalismo, as universidades sempre tiveram divisões internas desse tipo.
Com a introdução da pesquisa nas universidades, iniciada por Humboldt, que começa a correr em meados do século 19, instala-se outra divisão a que contrapõe a pesquisa básica e as então chamadas "ciências puras", à "pesquisa aplicada". Também esta não foi inspirada no neoliberalismo.
Na Europa de forma geral, as universidades, até recentemente, se recusaram a absorver a pesquisa aplicada e o saber técnico, assim como a formação para novas profissões como as engenharias, a economia e a administração e tantas outras.
O resultado disso, na França, foi a constituição, paralelamente às universidades, de instituições de alto nível voltadas para a formação desses novos profissionais, as chamadas "Grandes Écoles", que retiraram da universidade muito do seu prestígio e influência.
Nesse caso extremo, a universidade nem sequer incorporou a atividade de pesquisa, financiada com fontes externas que se organizou de forma independente através do CRNS (Conselho Nacional de Pesquisas Científicas). A velha universidade reduziu-se, praticamente, à área de humanidades.
Na Alemanha e na Inglaterra, por outro lado, embora a pesquisa básica ficasse nas universidades, toda a área tecnológica, especialmente as engenharias, foram relegadas a instituições não universitárias.
O modelo da Universidade de São Paulo foi, felizmente, outro, pois incorporou os diferentes tipos de escolas, de profissões e de pesquisa no seu âmbito, antecipando, assim, a tendência mais moderna que está começando a mudar, nesta mesma direção, as universidades européias.
A integração tem inúmeras vantagens. Não só, difunde, para as escolas profissionais e técnicas, padrões acadêmicos como a necessidade de obter o doutorado, mas também, evita que a universidade se isole do universo das atividades produtivas.
Isto nada tem a ver com ideologia neoliberal. Tem a ver é com seriedade e responsabilidade no uso de recursos públicos. Elevar o nível de instituições em que qualidade é essencial não é uma adesão ao "produtivismo" puro e simples.
Por outro lado, essa integração não pode levar à uniformização completa. O que há de errado que professores eminentes de clínica médica tenham um consultório particular e professores de engenharia de grande competência prestem consultoria externa?
Essas atividades têm, na realidade, duas mãos: os professores ajudam a sociedade e o sistema produtivo, mas trazem experiências práticas para dentro da universidade. Isto não torna essas escolas menos "públicas" do que aquelas onde todos os professores têm dedicação exclusiva, mas estão irremediavelmente afastadas da realidade social que existe em torno dela.
O perigo das simplificações de Marilena Chaui, no seu amor incontido pela universidade francesa, é que ela não atenta para o fato de que a diversidade interna não é prejudicial à universidade, mas a beneficia e que, a universidade, no seu conjunto, não pode se restringir ao modelo da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Creio que ela não se dá conta de que –levadas às últimas consequências– suas reservas mentais em relação ao que considera os tipos de escola "não públicas" não levaria à transformação das faculdades de Direito e Medicina, da Politécnica, da Economia e Administração, de Odontologia em réplicas da atual Faculdade de Filosofia. Ao contrário, as alijaria da universidade, reproduzindo o modelo francês das "Grandes Écoles" autônomas, reduzindo a USP à antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, extinta em 68.
Ao tentar qualificar ao extremo o que se entende por "universidade pública", Marilena Chaui, no fundo, a está atacando.

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