São Paulo, sábado, 9 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O que há de social no Fundo de Emergência?

ROSA MARIA MARQUES E ANDRÉ CESAR MEDICI

As recentes denúncias apresentadas pela Folha quanto ao uso de recursos que compõem o Fundo Social de Emergência (FSE) em áreas totalmente alheias aos programas sociais vêm demonstrar, de maneira insofismável, o verdadeiro caráter desse fundo.
Trata-se de um fundo de estabilização, criado com o único propósito de realizar a desvinculação de parte das receitas constitucionalmente voltadas para as políticas sociais.
A destinação de verba para setores tais como o Ministério do Exército, para as polícias Rodoviária e Federal, para o Dnocs, organismos internacionais, entre outros, torna evidente, mesmo para aqueles que não querem ver, que a criação do FSE significou uma profunda alteração da Constituição, sem que de fato e de direito, o Congresso Nacional tenha se manifestado acerca de mudanças de dispositivos relativos ao financiamento das políticas sociais.
Num certo sentido, o governo conseguiu, através do FSE, realizar aquilo que mesmo os setores mais consequentes do Congresso, presentes na revisão constitucional, não conseguiram evitar: a mutilação dos recursos destinados aos programas sociais.
As declarações por parte de membros do governo acerca da legalidade do uso de recursos para fins não-sociais em nada modificam essa verdade. Melhor seria reconhecer que a opinião pública foi deliberadamente enganada, pois o discurso governamental levava a crer que se tratava de um fundo criado para dar conta de despesas sociais consideradas essenciais, as quais, ainda de acordo com o discurso, não poderiam ser realizadas sem comprometer o objetivo de manter o Orçamento equilibrado.
O FSE não é, portanto, como expressa seu nome, um fundo social de emergência como os criados no bojo dos programas ortodoxos de estabilização, tais como os realizados no Peru, na Bolívia ou na Colômbia.
Nestes países, o impacto social da estabilização exigia que fossem gerados fundos (com recursos internos ou externos) para fazer frente aos efeitos perversos inevitavelmente dela decorrentes, como por exemplo o agravamento do desemprego e da miséria.
No caso brasileiro, o FSE constitui "apenas" um artifício para aumentar a liberdade alocativa dos gastos públicos no interior do Orçamento. A divulgação do uso de recursos em setores não-sociais só vem reforçar a idéia de que parte de sua receita será esterilizada na perseguição da estabilização e da zeragem do déficit público.
É esquecido que o gasto social realizado em determinadas áreas tem sofrido perdas irreparáveis desde 1990, de modo que o baixo volume de recursos a elas destinados não só impedem a manutenção de um atendimento mínimo à população, como dificulta que mudanças sejam realizadas tendo em vista a obtenção de maiores níveis de eficiência.
O programa de estabilização do governo parece não reconhecer também, como definia um de seus autores em tempos memoráveis, que o Brasil é uma Belíndia, e que a crise em que hoje vive a Bélgica só será resolvida à custa de melhoria do quadro socioeconômico da Índia.
Gastar mais e melhor nas áreas sociais –associado a uma política que promova a retomada do crescimento, do emprego e melhore a distribuição de renda– é um dos pontos de partida para resolver os graves problemas do país.
Por outro lado, como na próxima fase do plano de estabilização a política monetária não mais servirá ao propósito de cobrir déficits, torna-se possível que os recursos alocados no FSE sejam utilizados para cobrir o potencial déficit primário do setor público, dado que o Ministério da Economia pouco tem se empenhado na melhoria dos instrumentos de controle da execução orçamentária.
Assim, de uma forma menos convencional que o clientelismo, o social também vira moeda eleitoral.

ROSA MARIA MARQUES, 42, é professora do Departamento de Economia da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e técnica da Área de Políticas Sociais do Iesp/Fundap (Instituto de Economia do Setor Público da Fundação do Desenvolvimento Administrativo).

ANDRÉ CEZAR MEDICI, 37, economista, é coordenador da Área de Políticas Sociais do Iesp/Fundap e presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres).

Texto Anterior: Cofrinho cheio; Mídia problemática; Apesar de tudo; Outra cópia; Cuidando da imagem; Troca de comando; Tempos reais; Duas versões
Próximo Texto: O lado sinistro dos planos de estabilização no Brasil
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.