São Paulo, sábado, 9 de julho de 1994
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Romários se vingam do Brasil de Herodes

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Uma cidade só pode ser considerada civilizada quando comporta, além de seus setores indispensáveis à vida coletiva, os recantos onde vivem seres delicados, frágeis, como por exemplo as borboletas. Por isso o Rio de Janeiro está anunciando a inauguração, até o fim deste mês, do Borboletário Ferreira d'Almeida, Bosque da Barra, Barra da Tijuca.
Segundo informa a Fundação Parques e Jardins, o borboletário, que será uma nova atração turística da cidade, abrigará, num viveiro de mais de 3.000 metros quadrados, uns 2.000 exemplares de 25 espécies, muitas das quais ameaçadas de extinção.
Na simples menção a espécies ameaçadas de extinção temos por assim dizer a razão de ser do borboletário. O turista terá ali a sensação estética de contemplar borboletas raras e de sentir que o Rio as protege. Nas alamedas do borboletário encontraremos variedades como a borboleta-da-praia, que habitava as restingas da Barra e Jacarepaguá e anda muito sumida, porque desapareceram dali as trepadeiras aristolóquias.
O presidente da Fundação Parques e Jardins deu o nome científico da dita borboleta, "parides ascanius", e fiquei pensando no fascínio contido nesse nome misterioso da classificação. Para mim, a borboleta mais bonita do Brasil, que já foi muito comum aqui pelo Rio, é a grande, azulona e brilhante, que eu ouvia chamar de sertaneja e à qual foi dado um nome incompreensível e fascinante, entre o grego e o trágico, de "morpho menelau".
O borboletário que está quase abrindo na Barra terá currículos de entomologia e um horto com estufas e sementeiras, para produzir o que as borboletas gostam de comer.
E o Rio pensa também nos seus pássaros. Há algum tempo não vejo notícias do COA, mas me lembro de quando foi fundado, anos atrás. Refiro-me ao Clube dos Observadores de Aves, ligado ao Conselho Internacional para Preservação dos Pássaros (vejam que o leitmotiv é sempre a proteção aos frágeis, aos que podem desaparecer do nosso convívio) e ao Clube Britânico de Ornitologia.
Os ingleses como se sabe têm mania de passarinho e todos os anos se chocam, na seção de cartas dos leitores do "Times", os que disputam a primazia de haver visto ou ouvido pela primeira vez, depois de chegar a primavera, o cuco ou o rouxinol.
Aliás, se me permitem a digressão, eu poucas vezes me senti tão comovido entre compatriotas como ao visitar, durante um inverno de guerra, o jardim botânico de Londres, Kew Gardens. Na minha lembrança de repórter recém-chegado à Inglaterra, o próprio nome de Kew Gardens evocava o capítulo melancólico do fim, para o Brasil, do monopólio da borracha: para aquele jardim Henry Wickam levara as sementes contrabandeadas da hévea do Brasil.
Dali as plantas foram para a Malásia e para a conquista dos mercados mundiais. Pois em Kew Gardens, numa estufa de plantas tropicais com excelente calefação, apesar da economia de combustíveis que imperava no país, encontrei, num pequeno tanque, tartaruguinhas do Brasil. Olhei para elas com emoção, e, palavra, se não houvesse gente por perto, acho que eu teria dito alguma coisa terna, em português, aos muçuãs.
Terra de Herodes
Cidades e países se civilizam quando dedicam uma atenção especial às criaturas frágeis, indefesas, mas que são a graça, o sal da terra.
Em primeiro lugar vêm, naturalmente, as crianças. E o que todos estamos vendo é que no Brasil aquilo que já se chama de apartheid social vai nos transformando num estranho país, que começa a devotar uma atenção especial a borboletas e passarinhos, enquanto finge não ver que crianças dormem nas ruas mesmo quando um inverno especialmente rigoroso para todos fica gélido e mortal para quem dorme debaixo de marquises ou na calçada da praia.
E nesses lugares a polícia não permite que se acendam fogos à noite, pois a tal cidade civilizada ficaria com cara de acampamento de ciganos.
Não acho que seja um mau sintoma o fato de começarmos a cuidar direito dos bichos, pois zelo e compaixão pelos mais frágeis são virtudes indivisíveis. O terrível é estarmos criando, paulatina e paralelamente dois brasis. Um de costas para o outro. Um que cuida, com empenho e amor, dos seus filhos, dos seus bichos de estimação, das plantas. O outro, pobre, miserável, ainda meio escravo, continua produzindo filhos que constituirão escravos, já que não aprenderão a ler ou escrever.
No tempo da escravidão legal e reconhecida as crianças pelo menos tinham o que comer, pois viriam a ser braços para a lavoura. Agora as classes dominantes não precisam ter mais esse cuidado. Quem quiser que se vire e sobreviva, sem o angu dos escravos e sem a educação obrigatória que é a marca de nobreza de um regime democrático moderno.
E nem só da falta de pão morre o homem. O Brasil tem ainda as doenças, como o cólera, que nos confere a honra de sermos o país escolhido, o campeão, à frente da Somália e de El Salvador, Peru e Gana. Da dengue somos também campeões.
Às vezes, raras vezes, os dois brasis se comunicam. O governador Ciro Gomes, do Ceará, passou 20 dias de cama com dengue contraído no bairro mais fino de Fortaleza, a Aldeota. É que lá faliu, há anos, o Clube Líbano, frequentado pelo que havia de elegante entre cearenses e visitantes.
Os anos foram passando, o clube não conseguiu sair da falência, e suas piscinas abandonadas passaram a ser frequentadas pelo mosquito Aedes aegypti, que acabou atacando os da Aldeota e até o governador. A secretária de Saúde do Ceará, Ana Maria Cavalcanti, suspira: "O desemprego, a deseducação, a falta de saneamento, a desnutrição são a porta de entrada das doenças e epidemias".
Em Pernambuco, onde o cólera já virou um hábito, o governo só pode investir muito pouco na área de saúde. Segundo a Folha, gasta, por mês, mais ou menos o que o Hospital das Clínicas de São Paulo gasta num dia. O pior é que, segundo o secretário de Saúde do Estado, desse total investido "70% a 72% vão para a folha de pagamento. Outros 6% a 8% são dirigidos ao custeio da máquina administrativa".
Não custa observar que os que estão na folha de pagamento e na máquina administrativa já pertencem ao outro Brasil, ao Brasil de cima, que só pega dengue por engano.
Nesse Brasil mais esperto, dos que estão nas folhas de pagamento e nas máquinas administrativas, as pessoas, que lêem e escrevem, já sabem se defender de cólera e dengue graças aos serviços públicos de saúde. Como observa o cientista político Sergio Abranches, "é preciso assumir que a classe média brasileira pode pagar por seus serviços. Para essa classe média não pode haver serviço público gratuito ou mesmo subsidiado. Aí se incluem educação, saúde, transporte".
Constato, chegado a este ponto, que o ministro Beni Veras, do Planejamento, e Dom Mauro Morelli, presidente do Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar), liberaram R$ 1 bilhão para combater a mortalidade infantil e garantir a merenda escolar diária no Nordeste.
O ministro da Saúde está anunciando, por sua vez, a liberação de verbas de seu orçamento para os programas de leite materno e o ataque à desnutrição ainda no Nordeste, onde as crianças pobres em grande parte não atingem um ano de vida, enquanto as que sobrevivem mal ultrapassam metro e meio de altura.
Enquanto não dermos comida e educação às crianças pobres, continuaremos exterminando, às cegas, muitas borboletas azuis. Continuaremos, como o rei Herodes, a matar todos os recém-nascidos pobres, pois entre eles pode estar o salvador.
Peço licença ao Evangelho de S. Mateus (cap. 2, versículo 16) para inseri-lo no campo do futebol, o único em que o Brasil marca presença no mundo. Entre as notas que reuni para este artigo havia uma que falava nos meninos pobres de vila da Penha, o subúrbio em que nasceu Romário.
Todos, na vila, querem virar Romários: em primeiro lugar declaradamente, para fugirem à pobreza, e em segundo, obscuramente, para se vingarem deste país de Herodes dando-lhe glória no mundo inteiro.

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