São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Mãe diz que cumpriu promessa ao matar filho

MARCELO GODOY
DA REPORTAGEM LOCAL

A jornalista Vera Regina Weisheimer Manfredini, 44, diz ter cumprido a promessa que fez para seu único filho: disparou cinco tiros na cabeça de André Luiz, 20, na noite do último dia 5.
Antes, aplicou-lhe um injeção de analgésico que trazia na bolsa. Já fazia uma hora que ela havia recebido dos médicos a informação de que seu filho teria alta.
Para fugir da vigilância de amigos e de médicos, trancou a porta do quarto 272 do hospital Oswaldo Cruz, no Paraíso (zona sul de SP).
Por um momento, fraquejou. Mas retirou um par de luvas da bolsa e o revólver calibre 32. "Escolhi esse momento porque ele dormia. Não haveria dor."
Durante os oito meses de internações e as quatro operações de André em Curitiba (PR) e em São Paulo, Vera acompanhou o filho nos hospitais levando a arma.
"Ela me permitiria escapar a uma possível perda de meu filho." Vera tentou se matar e sobreviveu, apesar da bala na testa.
Deu esta entrevista no 5º DP, em São Paulo, pouco depois de deixar o hospital. A Justiça negou-lhe o direito de responder ao crime em liberdade: mandou-a para a Penitenciária Feminina.

Folha – Seu filho pediu para morrer?
Vera Regina Weisheimer Manfredini – Em 89, meu pai morreu em consequência de um câncer na garganta. O André era muito apegado ao meu pai, que teve uma morte lenta e dolorosa.
Na época, meu filho me fez prometer que, se acontecesse de ele ter uma doença sem solução ou que a esperança de cura fosse remota e hipotética, eu deveria pôr fim ao sofrimento. Que fosse indolor e que ele estivesse dormindo.
Folha – O pai de André, Luis Manfredini, disse que você não deixava o menino vê-lo. Luis afirmou que você já havia ameaçado matar André caso ele tentasse, na Justiça, ter o direito de visitar o filho.
Vera Regina – É mentira. Casamos em maio de 69. Em julho, fomos presos na Oban (Operação Bandeirantes, órgão de repressão do regime militar). Fui torturada com choques elétricos. Na época éramos da AP (Ação Popular).
Nos separamos após a prisão por motivos políticos. Reatamos na década de 70. Consultei um médico, planejei o encontro e, quando veio a confirmação da gravidez, pedi o desquite.
Ele nunca procurou o filho e eu não queria que ele o visitasse. É fonte de traumas a obrigação legal de permitir visitas sem que o pai tenha a obrigação de ver o filho. A criança se arruma e espera uma pessoa que falta ao encontro.
Folha – Como foi a infância de seu filho. Ele foi à escola?
Vera Regina – Ele teve uma infância saudável. Era muito inteligente. Aos dois anos André já sabia ler placas de ruas.
Com seis anos, era capaz de ouvir sinfonias e identificá-las pelo nome e pelo autor. O que o André mais prezava era o cérebro, que sentia ser debilitado pela doença.
Folha – Quando surgiu o primeiro problema de saúde de André?
Vera Regina – Ele tinha 12 anos. Começou a sofrer de hiperinsulinismo (excesso de insulina, hormônio que regula o nível de açúcar no sangue).
O último dia do André sadio foi 4 de novembro de 93. No dia seguinte, ele sofreu uma operação em Curitiba para corrigir o hiperinsulinismo.
Houve uma paralisia do estômago e do intestino de André. Ele não podia se alimentar.
Em 25 de fevereiro, nova operação. Parte de seu estômago foi retirada. Em 17 de maio outra cirurgia. André voltou para casa e seu estado ficou desesperador.
Segui um conselho e trouxe meu filho para São Paulo. Uma junta médica descobriu uma enorme infecção no abdômen.
Disseram que, se não permitisse que meu filho fosse operado, ele morreria em dois dias. Caso desse a permissão, ele teria menos de 10% de chance de sobreviver. Cada cirurgia servia apenas para apagar as falhas das anteriores.
Folha – Mas o diretor clínico do Oswaldo Cruz, Almiro dos Reis Junior, disse que seu filho estava curado. Por que você o matou?
Vera Regina – Após a operação, ele ainda teria que ficar se alimentando por uma sonda do nariz ao intestino delgado por mais seis meses a um ano. Então, haveria uma nova operação.
Ele recebeu a primeira refeição pela sonda às 16h. Além das dores que a sonda causava, ele voltou a sentir hipoglicemia (falta de açúcar no sangue causada pelo excesso de insulina).
Às 19h, ele começou a suar frio, teve taquicardia e dizia coisas incoerentes entre os intervalos de lucidez e inconsciência.
Vi que as crises voltariam e seriam constantes. Semiconsciente, André me disse: "Eu exijo que você cumpra a promessa".
Antes ele já havia me dito: "Eles (os médicos) dizem que é para meu bem, sempre dizem que é necessário e imprescindível à minha sobrevivência. Mas, a verdade é que não faço mais questão de sobreviver, eu só quero que acabe.
Não quero mais a ausência de liberdade, o regime impositivo e militarista dos hospitais, a retirada de sangue sucessiva e, muito menos, cateteres na narina e no pênis. São coisas que se suporta uma vez, duas vezes, mas não durante oito meses com a promessa de se recomeçar no próximo ano".
Como você o matou?
Vera Regina -Trouxe a arma no avião particular do ex-governador Roberto Requião, que transferiu o André para São Paulo. Ninguém sabia que eu tinha o revólver.
Comprei a arma por segurança. Ficava sozinha com o André nos fins-de-semana em uma chácara.
Eu sabia que tinha que cumprir a promessa, mas achava que não teria capacidade.
Ele estava dormindo sob efeito de analgésico. Dei-lhe outra injeção de analgésico. No quarto estava meu amigo José Benedito Trindade Pires.
Para ficar sozinha, pedi para ele encher minha garrafa térmica de café. Escrevi uma confissão sobre o que ia fazer.
Apanhei luvas, fechei a porta do quarto e apaguei a luz. Peguei a arma com os olhos fechados.
Passei a mão na testa do André e procurei um ponto que não o desfigurasse. Escolhi uma área acima da orelha. Tremi e disparei três tiros.
Ainda com os olhos fechados, sentei e atirei na minha testa. Pensei que com um único tiro, a morte seria imediata e indolor.
Após o disparo, continuei consciente (a arma, um revólver argentina, não teve potência para perfurar seu crânio e a bala ficou cravada na testa).
Nesse instante, ouvi meu filho sufocando em seu próprio sangue. Fiquei desesperada, pensando que sua morte não seria indolor como eu havia prometido.
Pensei em novas cirurgias, desta vez, em seu crânio. Consegui me erguer e levantei o encosto de sua cama para que ele vomitasse o sangue e não sufocasse.
Disparei mais dois tiros no André. Sentei novamente e pensei que teria poucos minutos de vida. Senti uma tranquilidade imensa porque imaginei que não teria coragem para realizar a promessa.

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