São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Capital humano, o mercado e o Estado

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

É comum no Brasil a crença de que o mercado regido pelo sistema de preços é incompatível com políticas sociais voltadas para a redução da desigualdade e da privação material.
Defender a abertura econômica, a desregulamentação e a privatização, acusam os críticos da liberalização, é adotar uma postura negligente diante da pobreza e condenar largos segmentos da população ao desemprego e ao "apartheid social".
O equívoco desta tese pode ser desfeito de várias maneiras. A mais direta é a simples observação da experiência mundial.
Se a existência de mercados livres fosse sinônimo de exclusão social, a miséria no Canadá seria maior do que na Índia.
A economia chilena é a mais aberta e desregulamentada da América Latina. Não obstante, nenhum outro país do continente vem fazendo progressos tão rápidos e expressivos na redução da pobreza quanto o Chile.
Mas o melhor antídoto contra a noção de que defender o livre mercado implicaria "ipso facto" abraçar o fatalismo social é a própria evolução da teoria econômica.
A história das idéias mostra com clareza e abundância de exemplos que o respeito à eficiência alocativa do mercado regido pelo sistema de preços é perfeitamente consistente com a adoção de iniciativas ousadas no campo da política social.
O argumento que vinculou a lógica do mercado a uma política social ativa foi a descoberta da importância do investimento em seres humanos para o desenvolvimento e a criação de riqueza.
A expressão "capital humano" pode soar estranha à primeira vista –já encontrei gente que ficou ofendida pela mistura de algo tão "sujo" com algo tão "sublime"–, mas ela não é gratuita.
O capital humano é rigorosamente "capital" porque ele é um estoque produtivo que resulta de um fluxo de investimento pretérito e propicia um fluxo de retorno futuro.
Parte deste retorno é privado, ou seja, vai para o proprietário do ativo, e parte beneficia a sociedade como um todo.
O capital humano refere-se às capacidades cognitivas e morais dos seres humanos enquanto agentes geradores de renda na economia.
O que se constatou foi que existe uma estreita relação entre saúde, nutrição e educação, de um lado; e capacidade de trabalho, iniciativa e geração de renda, de outro.
O respeito às regras do jogo do mercado é fundamental, mas não é tudo. Muito depende da qualidade dos jogadores.
Para elevar a produção per capita e vencer a pobreza em massa é necessário investir no fator de produção seres humanos.
Foi este argumento que levou os pioneiros da economia neoclássica, adeptos do mercado como mecanismo de incentivo, coordenação e alocação de recursos, a sugerir medidas radicais visando garantir o acesso de toda a população –especialmente a de menor idade em famílias de baixa renda– a padrões mínimos de saúde e educação.
Jevons, por exemplo, jamais vacilou na defesa da compulsoriedade do ensino básico: "Os pais seriam, em tese, os melhores guardiões educacionais da criança; mas, se o resultado for nenhuma educação, não há base para a teoria. Neste caso, o Estado dispensou a metafísica, entrou em cena e ordenou que a criança fosse educada".
Ainda mais forte e atual –tendo em vista o quadro brasileiro– foi a conclusão de Marshall: "Não existe extravagância mais prejudicial ao crescimento da riqueza nacional do que aquela negligência esbanjadora que permite que uma criança bem-dotada, que nasça de pais destituídos, consuma sua vida em trabalhos manuais de baixo nível. Nenhuma mudança favoreceria tanto um crescimento mais rápido da riqueza material quanto uma melhoria das nossas escolas, especialmente as de grau médio, desde que possa ser combinada com um amplo sistema de bolsas de estudo, permitindo assim ao filho inteligente de um trabalhador simples que ele suba gradualmente, de escola em escola, até conseguir obter a melhor educação teórica e prática que nossa época pode oferecer".
Ou como disse Pigou (o sucessor de Marshall em Cambridge): "Existe um amplo acordo de que o Estado deve proteger os interesses do futuro, em alguma medida, contra os efeitos do nosso desconto irracional e da nossa preferência por nós mesmos em detrimento de nossos descendentes". No fundo, é o que alertava o poeta: "Os pequenos sofrem com a tolice dos grandes".
O princípio básico subjacente a estas posições pode ser resumido numa fórmula simples –a igualdade de resultado oprime, a igualdade de oportunidade libera.
O papel do Estado não é tentar garantir a igualdade de renda entre os indivíduos, mas sim a igualdade de oportunidade. Não cabe ao governo tentar implantar na sociedade, de cima para baixo, um padrão de distribuição de renda preconcebido e politicamente definido.
A missão do governo é, antes, garantir ao maior número possível de pessoas as condições iniciais básicas de nutrição, saúde, educação e formação profissional, para que possam desenvolver plenamente sua potencialidade econômica, contribuir para a geração de riqueza e defender seus próprios interesses numa economia de mercado.
Este princípio está fundamentado em critérios de justiça e eficiência. A teoria econômica mostra que o governo pode e deve interferir na arena distributiva, respeitando ao mesmo tempo as regras do jogo e a eficiência alocativa da economia de mercado.
O caminho é alterar a dotação inicial de recursos, garantido condições de saúde e educação adequadas para o maior número possível de indivíduos.
Ao fazer isso, o Estado estará não apenas melhorando indiretamente a própria distribuição de renda, mas dando também uma valiosa contribuição para a elevação do nível de eficiência do sistema, ao permitir que os talentos e habilidades latentes dos indivíduos possam ser efetivamente mobilizados para a geração de riqueza, em vez de serem simplesmente soterrados, sem deixar traços, pela má nutrição, ignorância e privação material.
É função do governo –e perfeitamente de acordo com a lógica do mercado– concentrar esforços e recursos para evitar o desperdício humano e econômico do "Machado de Assis analfabeto" e do "capitão de indústria trombadinha".
Nosso problema, no Brasil, já não é mais ideológico ou de esquerda versus direita –é civilizatório.

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