São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Cem mil anos depois do fim

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Something wicked this way cometh.
("Algo de maligno se aproxima", William Shakespeare, "Macbeth")
Na imensa sala de alumínio estão lesmas brancas e sem cor, estão morcegos (na falta de outro nome, talvez "morcêgulos"?), chapéus de sapo, fungos esfarinhados contra o alumínio, formas lentas, gosmas rebrilhando em pálidos arco-íris, madrepérola de caracóis, musgos, latejantes águas-vivas, cogumelos, teias com principiantes aranhas. Aqui dentro da antiga sala do século 20, ainda não há devoração mútua. A fauniflora ainda jaz entre vegetal e animal, ainda se nutrem de restos de umidade, de riocorrentes mínimos ali nos regos e canos furados, ainda se nutrem de restos de plásticos redivivos, isopor fecundado, frestas purulentas, desvãos, gretas de onde fluem formas moles e fios se torcendo, orelhas de-pau ferrugentas, bolhas evoluindo em direção a óvulos, corrimentos, escorrimentos, olhos d'água, sanguessugas, ejaculações, esponjas, anêmonas, arremedos de nenúfares, cílios moventes, dedos, tentáculos, lágrimas, lamas imemoriais, campânulas, visgos. Vegetação borrachosa no escuro.
Por vezes, durante o dia, réstias de sol penetram na sala de alumínio. Os raios de sol (ainda tênues) atravessam a poeira secular e entram na sala.
Deles se nutre a vegetação de fungos e mucos. É uma sala, uma ilha, uma super-ilha abandonada de TV. Na parede, dezenas de telas apagadas (há quanto tempo?).
Switch "on"
A hipótese de uma lesma passar sobre o switch de POWER da mesa de controle geral das telas de TV é de um para dez milhões. Estamos a um segundo antes de uma grossa lesma se arrastar com peso suficiente para detonar o botão de ON da ilha de telas escuras e cobertas de pó. A lesma passa sobre o botão verde. Explode uma onda de luz na sala. Luz e som. Os organismos vivos (a lesma protagonista inclusive) captam a energia nova: freiam-se, fremem a este estímulo novo, a luz clara colorida pulsante de som e seus corpos, hastes, antenas, sensores, radares, sonares, ventosas, tudo freme e se retrai.
Aos poucos, vão se acostumando ao novo "environment" sonoro e visual e recomeça o rastejar, o parir, o desovar, o fremir, o gosmar.
O asteróide
Na grande tela 1 gira uma galáxia em forma de espiral fotografada pelo telescópio Hubble. O som que estourara muito alto, que estremecera as larvas do novo tempo parou de repente, causando outro fremir, um relaxo nos corpos dos morcegos cegos, dos vulviformes, dos bivalves e na tela só ficou a azul galáxia girando.
Um rosto de homem (cabelos brancos) gritando mudo na tela, gritando, apontando para um mapa celeste, uma imagem infravermelho de telescópio (o Hubble aparece girando silente no ar negro). Um leitor de lábios mudos leria as frases de terror que a boca torta do astrônomo gritava: "... diâmetro por volta de dez quilômetros, magnésio, ferro, níquel, de certo um detrito que despencou dos anéis de Saturno por via da influência gravitacional (será?) há muitos anos do Shoemaker-Levy 9, um cometa de gelo ridículo que se enfiou em Júpiter a 16 de julho de 1994!".
O som voltou brutalmente... urros pelo ar e novos tremores nos corpúsculos. A lesma parou com tremolos de antenas. Homem (grita): "Não há erro possível! O asteróide vem direto à Terra, chega em cinco meses! Só faltam calcular detalhes de sua rota, mar ou terra?!!!".
Highways do Espaço
Outra tela se acende. Generais gritam uns aos outros, entre mapas celestes e corta direto para Cape Canaveral.
Ogivas são mostradas entre gritos.
General: "O problema do tiro de um míssil é que são duas balas em direção inversa. Elas têm de se chocar de frente como dois enormes caminhões nas 'highways' do espaço!" (O general sorriu da frase; ainda havia tempo para um resto de vaidade). "A ciência é a esperança!", gritava outro general numa sala cheia de mapas, apontando a rota dos foguetes que sairiam em girândola ("wreath formation"), diziam no vídeo.
O som entrava e saía, oscilante.
HorrorOutra tela de TV mostrava milhares de judeus no Muro das Lamentações. Outra tela mostrava a "kaaba", com multidões de islamitas pisoteados. Notava-se neles um ostensivo desejo do esmagamento, com feridos morrendo e sorrindo para o céu de pés e corpos que os destruíam. Outra tela voltava para Cape Canaveral e a mesma cena parecia se repetir, com milhares de pessoas invadindo a base e rezando ao pé dos foguetes que partiriam dentro de dias, e eram expulsos por pelotões de soldados, também se vendo nos rostos feridos e esmagados uma estranha expressão de triunfo.
Outro vídeo se acendia e recortava a lenta forma da lesma que subia agora pela tela, ambientando-se a esta nova fonte de energia, que de algum modo a fazia mutante, com o brilho das antigas lagartas de fogo. (As TVs não eram mais programas; eram apenas canais abertos, câmeras paradas onde entravam e saíam rostos, gritos, avisos, imagens desconexas.) Numa delas fala um velho (um filósofo?), como se falasse para ninguém, para si mesmo. "Nossa grande perda é que pensávamos controlar nossa morte. A história é uma sucessão de catástrofes que acaba na derradeira. Não é a história humana: é a história da natureza!"
O filósofo falava chorando: "A grande humilhação é que podia haver uma culpa a atribuir a alguém, a uma falha da ciência, a um erro. Não. Nem isso: vamos acabar porque tudo deu certo!"
Ele é violentamente interrompido por um cientista-militar: "Canalha, canalha, nossas ogivas vão atingir o alvo, temos ainda duas semanas para atirar em "wreath formation", canalha pessimista!" O militar é agarrado por mãos fora de quadro, enquanto o filósofo terminava: "Uma vez, eu joguei sal numa lesma na parede do jardim; por um segundo ela virou suas antenas para mim e caiu morta!" (A lesma de agora, numa espantosa coincidência (um para 30 bilhões) passava lenta em sua testa, na contraluz da tela.)
"Somos detritos do 'big bang', o asteróide fui eu, e nós aquela lesma!"
Militar volta e atira no outro, sangue no rosto, o quadro fica vazio, berros, gente correndo.
Um locutor desgrenhado (grita): "As câmeras continuam abertas, tragam soluções, por Deus, alguma solução virá!" (Não havia mais intervalos, a publicidade acabou.) Casal de cientistas berra no vídeo:
"Eu e minha mulher descobrimos o asteróide! Nós fomos os primeiros! Nós o batizamos de 'Silverstein-Sophie' e é preciso que todos saibam disso, nós vimos antes do Hubble! Nossos direitos..."
São empurrados para fora. A tela se apaga.
Outra se acende, numa programação de algum "timer" que o bicho disparou. Vemos uma extensa praia de cidade costeira (Daytona Beach?). Multidões fogem dali para o interior, a câmera mostra a fuga vista do alto, sem closes, milhões de formigas fugindo.
Homens cantando mantras vêm chegando e ficam sentados na praia (correu que ali seria o local exato do impacto) para ter o "last kick of all". Galáxias imensas, cor de púrpura, azul profundo, leitosas, giram.
Câmera aberta na rua, na rua, como que grafittis para o futuro vão sendo colocados ali, gente se acotovela, olhando dentro da lente, rostos de pavor, olham como que esperando fugir para dentro do tubo, pessoas se beijam, se gravam, se agarram, se comem na frente da câmera. Algum desesperado fez estas imagens, com a câmera balançando como um pêndulo sobre os corpos nus se comendo, as bocas grudadas como células querendo se salvar. Ao fundo, vemos a queda dos suicidas, gotas chovendo dos altos prédios e os gritos de amor.
Pássaro-dinossauro
Pela erosão do tempo, cai subitamente a cortina que oculta o mundo exterior da imensa sala de alumínio. Surge a paisagem lá fora. O sol brilha, mas tudo está mergulhado numa outra cor, uma cor laranja-escuro, como se tudo
(continua)

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