São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Cem mil anos depois do fim

ARNALDO JABOR
(CONTINUAÇÃO)

fosse filmado através de um filtro 85-M (magenta). Contra o céu quase púrpura, flutuam aves pesadas.
Uma delas bica o vidro da porta com um ruído ritmado como um pica-pau. Ave grande, com plumas, com a pele tendente para um vago tom de carne ou couro, um jeito frio de réptil já assoma em seu corpo. A ave adivinha a comida que cresce ali dentro, mas muito tempo se passaria até o vidro se desgastar e ela entrar. Não chegará ainda naquela sala o tempo dos devoramentos. Aquele pássaro estava ali se preparando para um dia cair na população rastejante da ilha de TV, como um asteróide.
Idade do Gelo
No início, houve tentativas de adaptação à chegada do asteróide final. Um grande frisson racional de defesas. Grandes mísseis partiriam três dias antes do grande impacto. Na Terra, (houve cinco meses para as tentativas) criaram-se empresas de abrigos subterrâneos, biosferas, as altas montanhas foram loteadas com grandes lucros (na hipótese de queda no mar, para evitar as grandes ondas, as "tidal waves" que destruiriam todas as costas). As cenas que apareciam nos vídeos –como um fundo para a lenta população de bichos na sala, seu arrastar-se, seu parir, sob o incessante ruído metralha do pássaro-réptil que bicava sem parar o vidro– ainda eram muito claras, muito agitadas, muito faladas. Depois da primeira fase (a notícia do fim), os discursos tranquilizadores: "Não há motivo para pânico, nossos foguetes vão barrar..." deram lugar a uma racionalização dos políticos contra os cientistas:
"Há exagero nos cálculos, os estragos não serão grandes, a nuvem de poeira poderá baixar em pouco tempo..." (os cientistas falavam em impacto de 500 mil bombas H).
Esta segunda fase foi marcada por uma sórdida esperança. Um trôpego otimismo marcava agora as falas que surgem nas TVs. Um otimismo marcado pouco a pouco por mais egoísmo, na esperança suja de que a tragédia atingisse os outros e nos poupasse. Os ricos dotaram minas abandonadas com metralhas e vigias, mas os cientistas se aplicavam em matar estas esperanças com novos cálculos, de que a nuvem de poeira poderia ficar um século no ar e o sol negro criaria uma nova Idade do Gelo.
Cientistas: "Sobrarão animais marinhos, fungos, talvez as eternas baratas, bichos profundos, enguias cegas, peixes luminosos, solitárias marinhas, corais, bernardos-eremitas e formas de vida remotas!".
E os cientistas eram assassinados por multidões de infiéis, as "patrulhas da esperança", comandadas por evangélicos, messiânicos e pouco a pouco a linguagem da esperança foi se mudando num discurso psicótico e místico, que dividia os homens em multidões depressivas de gente caída pelas ruas esperando o grande "bang" e esquadrões de otimistas, lutadores, que cantavam hinos! "A grande pedra virá da galaxia de Deus! Aleluia!"
E brigadas de esperançosos faziam "raids" assassinos entre os milhões de melancólicos que esperavam inertes o dia da chegada do asteróide "Silverstein-Sophie".
E estas grandes ondas humanas tinham sons altíssimos (quem ouvia, a não ser as trêmulas antenas dos seres rastejantes da sala?). As falas iam numa ladainha cada vez mais incompreensível (se alguém estivesse ali pra compreender). Os loucos começaram a comandar o espetáculo com mensagens cifradas cheias de sentido. E todas estas imagens eram muito brilhantes, luzes fortes, claras.
Até que em todas as telas cessa o som e em todas as telas, num silêncio absoluto, vem girando uma imensa bola de fogo (pois todas as câmeras estavam viradas para o céu). O impacto não foi ouvido. Um longo tremor nas imagens, como um sino vibrando sem som. A bola de fogo desceu em silêncio nas telas, só cortado pelo insistente bico do pássaro no vidro da porta, o olho redondo do pássaro-dinossauro bicando em busca dos bichos da sala.
Veio um novo surto de esperança. Convocações à inventividade humana. As vozes agora são sussuradas, silhuetas falando em "estufas" contra a Era Glacial, em abrigos abastecidos contra o frio, massacres de multidões de excluídos que nem sabiam do desastre que viria do céu, milhares de corpos cortados a bala diante dos abrigos, tentativa de grandes ventiladores capazes de relançar a poeira glacial para além da atmosfera. O som do bico do pássaro continuava ruflando no vidro, e continuaria por muito tempo, enquanto os discursos ficavam cada vez mais aleatórios, as imagens mais apagadas, agora vagos momentos que vão e vem, trechos soltos sem nexo, até que uma grande melancolia glacial cai nas telas. A idade do gelo.
O Aleph
Cessa o ruído do bico do pássaro, pois lá fora o sol púrpura se escondeu. Cai uma noite maciça, sem uma estrela, mas, dentro da sala, a luz das telas mostra ainda um homem muito velho chorando e rezando, que começa a exibir um longo clip para o futuro, como um "aleph" de Borges. As imagens começam a fluir e vemos o populoso mar, vemos a aurora e a tarde, vemos as multidões da América, vemos intermináveis olhos nos espiando como num espelho, vemos todos os espelhos do planeta e nenhum nos reflete, vemos raízes, neve, vapor de água, desertos convexos, e cada grão de areia, mulheres lindas inesquecíveis, suas violentas cabeleiras, um câncer no peito, a noite, o dia, o poente que parece refletir uma rosa, vemos a Índia, um dormitório sem ninguém, pirâmides, cavalos de crina em caracol, a delicada ossatura da mão, sobreviventes de uma batalha, um astrolábio persa, a circulação do sangue, a engrenagem do amor, tigres, êmbolos, bisontes, planícies com búfalos, exércitos, bocas, corpos arfantes, a capela Sistina, árias de ópera, Wagner, labirintos, serenos rostos de Fídias, Platão, o Nascimento de Vênus, máquinas de Da Vinci, xadrez, Ucello, Shakespeare, jardins.
Enquanto estas imagens passam nas telas, enviadas para um futuro sem olhos, os bichos vão aos poucos evoluindo milimetricamente no escuro, os cogumelos se tornam um pouco mais venenosos, para futuras defesas (contra os bicos dos pássaros?), débeis sonares se formam nos morcegos sem olhos, cílios ardentes começam a se eriçar nas lagartas, a lenta evolução retoma um ciclo de milhões de anos.
A história da natureza nunca fora interrompida, pois os fungos, as campânulas se preparam para a defesa, para o ciclo de devoramentos que lá fora sob o sol roxo nunca se interrompera, mas que aqui dentro evoluía mais lento, adaptado ao habitat da sala da civilização extinta, mas criando armaduras, gosmas defensivas, asas precárias, olhos detetores, enquanto, ao fundo nas telas, passava o drama que fôra um dia o drama humano, e que agora era apenas um fundo, um fungo (a História teria sido um fungo?)
Torsos gregos passavam, sob o ruído do bico do pássaro-dinossauro que construía o futuro "raid" à sala fechada. A história humana tinha virado apenas história natural.
"Begin The Beguine"
Mais uma tela se acende, com luz e cor desta vez. O quê? talvez um antigo trecho de fita gravada, muito antes de tudo. Uma orquestra com muito sopro e um homem sapateia, elegante, magro. Quem? Fred Astaire.
Novo fremir nos corpos dos bichos pelo novo som forte e melódico. Fred Astaire sapateia, sorrindo.
E como a fita onde ele está gravado é digital e dispõe de mecanismo de "auto-reverse", sempre que ela chega ao fim, volta ao início e recomeça a "routine", sob o bicar sem fim do pássaro lá fora, e como a fita digital tem uma perda mínima de "angstrõms" por século, e como a probabilidade de uma lesma de novo passar pelo botão vermelho e desligar tudo é agora bem menor, talvez de 1 em 20 milhões, é possível que nunca mais se repita a trajetória da dita lesma, que 100 mil anos depois ligou os últimos dias da história humana, e é possível portanto que Fred Astaire e Eleanor Powell fiquem dançando "Begin the Beguine" por toda a eternidade.

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