São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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"Atletas não podem mentir"

Jean-Luc Godard fala de sua paixão pelo esporte

OLIVIER BRETON
DA "L'EQUIPE"

"Todos nós podemos criar uma ilusão, menos os esportistas", afirma o diretor francês Jean-Luc Godard na entrevista a seguir.
Desde 1960, quando lançou seu primeiro longa-metragem, "Acossado", ele ocupa um lugar sempre à parte no cinema mundial e mais que um diretor, é um dos grandes pensadores da atualidade.
Apaixonado por esportes desde a infância, Godard, hoje com 63 anos, continua a jogar tênis e a acompanhar com afinco os resultados em todos os esportes.

Pergunta - Se alguém fala de esportes o sr. faz cara feia? Ou explode em gargalhadas?
Resposta - Não se iluda. Entre o esporte e eu sempre existiu uma relação profunda e passional. Isso vem desde minha infância. Na escola primária e no colégio, eu praticava igualmente bem e sempre o futebol, a natação, o basquete e o esqui. Além disso eu jogava bastante tênis, que não era difundido.
Pergunta - O sr. está sendo visto outra vez nas quadras de tênis.
Resposta - É verdade. Depois que me mudei para a Suíça outra vez, retomei o tênis para me manter em forma. Voltei a praticar ginástica, e sou muito assíduo.
Pergunta - É uma necessidade, para o sr.?
Resposta - De fato. Pratiquei bastante atletismo, em nível muito modesto. Mas isso me permitiu ter a resistência necessária para fazer filmes. Ser cineasta é extremamente cansativo: a gente corre, se desloca, vive com os nervos à flor da pele... É exaustivo!
Pergunta - Existem esportes de que o sr. não gosta?
Resposta - Não gosto do boxe, porque não gosto de guerra. As touradas? Eu as compreendo... Mas, ao mesmo tempo, não compreendo tudo que se obriga esses animais a sofrerem.
Pergunta - O esporte influenciou o sr. em sua carreira?
Resposta - Sem dúvida. Eu lia as aventuras dos esportistas como se fossem romances. Elas se confundem com um período de minha vida, de minha adolescência. Uma certa forma de romantismo... A tal ponto que ainda me recordo de quase todos os nomes.
Pergunta - E agora, qual é sua relação com o esporte?
Resposta - Além dos exercícios que faço muito frequentemente, eu costumo assistir pequenas partidas. Gosto tanto de assistir uma grande partida, para a qual é preciso me deslocar, quanto ver um sujeito batendo uma bola contra um muro por uma hora, se sinto que ele está convicto do que faz. O que vale, para mim, é tanto a troca quanto a beleza do gesto.
Pergunta - No entanto, vemos pouco esporte aparente em sua obra de cineasta.
Resposta - É verdade. Eu me contentei em falar de esporte nas críticas de cinema, nas entrevistas e em outras ocasiões...
Pergunta - O sr. parece nostálgico.
Resposta - Parece-me que o lado alegre, bem-comportado desapareceu. Isto dito, é verdade que quando se envelhece costuma-se dizer que as coisas eram melhores na nossa época... Na verdade, são iguais e pode-se fazer comparações. Assim, Senna me parecia mais próximo de Fangio do que de Prost. Mas fico revoltado com o fato dos jovens não conhecerem tudo aquilo: Suzanne Lenglen, Borotra, etc. Os jovens esquecem tudo. Seus pais também. Quanto a mim, sou capaz de citar todos que me fizeram vibrar: Zatopek, Bannister, Elliott... Hoje em dia esses nomes são desconhecidos. Tenho dois professores de tênis e eles não se lembram de nenhuma das finais fantásticas de tênis. Não sabem porque os tchecos são tão fortes no tênis e os húngaros na natação. Eles não analisam. A mesma coisa acontece com os cineastas jovens.
Pergunta - Com relação a este ponto, é possível traçar um paralelo entre o mundo do cinema e o mundo do esporte?
Resposta - Sim, infelizmente. Os esportistas de alto nível buscam o estrelato. Como os atores no cinema, e em outros campos também. Como na política... É que o verdadeiro trabalho não é mais feito. As estrelas, em Hollywood –nunca foram elas que fizeram bons filmes. Mas elas querem fazer concorrência com Deus. Certos esportistas seguem seu exemplo.
Pergunta - O que o sr. entende por "o verdadeiro trabalho"?
Resposta - O esporte agrada porque é um dos poucos lugares onde as pessoas vêem trabalho. Um esportista, sem ser um intelectual ou um artista como na dança, no canto ou na ópera, não pode mentir. O homem político pode mentir, o ator pode mentir. Eu que me apresento ao banqueiro lhe dizendo que vou fazer o melhor filme do mundo, e o ator que me diz "Vou atuar como ninguém atua", todos nós podemos criar uma ilusão. No esporte não. Ainda existem verdades: um atleta que fala "eu salto 2,10 metros", a gente coloca uma barra para ele saltar e vê. Mas para chegar a isso é preciso muito trabalho, muito treino. É por isso que amamos o esporte. Às vezes se faz algum truque, mas isso não dura muito tempo. Eu mesmo tomo Supradyne, portanto... Não se pode negar que existe uma certa perda de imagem. Não se deve enganar demais, como no futebol...
Pergunta - Voltemos aos atletas que se tornaram estrelas. Em que momento eles se desviam do caminho do esporte?
Resposta - Quando eles se tomam por Deus. Sua única desculpa é que é o único momento social que lhes é oferecido para acreditarem nisso. Em dado momento não existe grande diferença entre isso e a prostituição. A idéia é fazer muita coisa com seu próprio corpo para ganhar dinheiro. E além disso, as carreiras se tornaram mais difíceis. Na época de pessoas como Marcel Bernard ou Bernard Destremau, eles podiam exercer sua profissão: serem bons tenistas por muito tempo e fazerem trabalhos interessantes. Hoje, eles não podem, e têm que parar depois de três ou quatro anos. É triste assistir um bom jogador como Boris Becker ou o último McEnroe brincar com a facilidade. Eles não treinam, e a partir do momento que é preciso treinar um pouco mais, desistem. Um dos exemplos mais recentes é Connors. Mas hoje, na maioria dos casos, é duro demais.
Pergunta - O destino desses astros o comove?
Resposta - Não, não. Esses astros do esporte não são tão interessantes. Não são eles que mais me interessam. Ah, se a televisão mostrasse uma partida da quarta divisão ou de times da província, isso sim é esporte! Mas onde está o esporte, hoje? O público atual é manipulado, é formado.
Pergunta - Qual seria a boa transmissão televisiva?
Resposta - Para filmar esportes bem seria preciso seguir o sujeito –ora, esse sujeito muda a cada partida, a cada movimento. Não há espaço para tudo, portanto é preciso filmar menos, por mais tempo e pouco. Hoje a televisão privilegia a pessoa, mais do que a obra. No caso dos esportistas é o nome que retemos na memória. As pessoas fazem menos obras, mas suas obras são elas mesmas. Numa partida, tudo se tornou um pouco parecido. E como tudo é parecido e é preciso destacar alguma coisa, exibe-se o nome. A partida se torna secundária. Todas as partidas se assemelham, na televisão.
Pergunta - Em sua opinião a televisão presta um desserviço ao esporte?
Resposta - Sim. Ela despossui o esportista, o criador, de sua obra. Observem que ela faz isso em toda parte. Então, no esporte, isso se torna completamente obsceno, tendo em vista o dinheiro que está em jogo e tendo em vista que nada é dado em troca. Vemos jogadores de tênis, ciclistas, pilotos -é espantoso que ainda tenham um nome, com a quantidade de marcas que ostentam em seus uniformes. O mais espantoso é que isso não os constrange. Mas é outra coisa que está em jogo ali. O fato de uma lógica econômica os queimar, os esmagar, isso lhes diz respeito.
Pergunta - Essa constatação impede o sr. de assistir programas de esportes?
Resposta - Não, porque não ponho em dúvida a verdade do corpo e do espírito que anima o esportista. Como amador dos esportes, eu "releio" o evento. Observo todos os detalhes. Mas isto não se faz em três minutos!
Pergunta - A câmara lenta nos dá um tempo para reflexão...
Resposta - Sim e não. Pois, na verdade, no tênis não posso me servir da televisão e de suas câmeras lentas para aprender a dar um saque. Quanto ao trabalho da câmera lenta no futebol, ele se torna uma espécie de falsa criação artística daquele que tem uma máquina que faz a câmera lenta. É a máquina que o faz, e não a pessoa.
Pergunta - Quer dizer que em sua opinião é aos técnicos e aos jornalistas esportivos que falta imaginação, criatividade?
Resposta - De fato, nunca se sabe antes de um evento o que será realmente interessante de ver, de filmar. Como poderiam os comentaristas sabê-lo? Eles sequer estão ao lado do campo, estão no alto do estádio, eles olham para sua tela de televisão, eles sequer fazem seus comentários diretamente, como antigamente no rádio. Eles têm uma visão pior do que o mais miserável dos espectadores. Eles comentam o que vêem na televisão.
Pergunta - O ideal seria retirar todos os comentários?
Resposta - Sem dúvida alguma. A televisão é restrita pelo lado econômico-cultural, que faz com que vejamos menos o gesto, a duração. E menos ainda a violência e o barulho. O som não é mais tratado, ou é muito diminuído, pois é abafado pelo comentário. Não se ouve mais. O Tour de France deveria ser mostrado na televisão praticamente sem voz. Poderíamos ouvir as bicicletas, a chuva...
Pergunta - A relação televisão-esportes lhe parece próxima da relação televisão-cinema?
Resposta - Existem relações. A televisão não fez bem aos esportes porque muitos clubes não recebem o dinheiro que deveria reverter a eles. É como no cinema. Não se faz boas partidas ou filmes brilhantes que agradam a todo mundo. De tempos em tempos é preciso fazer coisas medianas, que agradam a todos. Assim como não é normal que alguns de meus filmes não possam ser distribuídos ou sobreviver tendo menos espectadores, não é normal que equipes medianas devam tanto dinheiro para sobreviver.
Pergunta - Aqui o sr. introduz novo parâmetro, o dinheiro.
Resposta - No cinema assim como no esporte, há dinheiro demais que vai para fora e que não retorna ao mundo de onde veio. Com o dinheiro do esporte, deveríamos ajudar outros países no campo do esporte. Mas o que acontece de fato é que não existe reflexão de fundo, de boa-fé: retornamos à Idade Média, aos jogos romanos. O Comitê Olímpico em Lausanne, Saramanch –são trapaceiros, são homens de negócios. Eles se recusam a reconhecer o fato.
Pergunta - E as altas instâncias do futebol?
Resposta - Nos casos recentes envolvendo a Uefa e a Fifa, as federações européia e mundial de futebol, eu era a favor de todos. Eu achei tudo muito bom. Pode-se dizer que mercenários são corrompidos? Isso não faz sentido. Eles têm uma honra de mercenários. A batalha de Marignan, que François 1º ganhou contra os suíços, foi vencida simplesmente porque ele havia comprado uma parte dos suíços e pago mais caro. Não se deve tapar o sol com a peneira. Pode-se dizer que um jogador que vai ganhar US$ 2 milhões no Masters de Frankfurt não é corrompido? Ele faz parte de um lote. Além do mais, não é igualmente difícil receber 100 francos e errar um gol e receber 100 francos e acertar esse gol?
A China explodiu uma bomba atômica no dia depois de ter sido privada dos Jogos Olímpicos. Isso é a modernidade... Como o esporte foi invadido pelo dinheiro, pela publicidade, as pessoas têm dificuldade em compreendê-lo. Todo esse dinheiro não retorna aos esportes. É como o sucesso dos artistas, isso não tem interesse: o dinheiro que Gérard Depardieu ou Harrison Ford ganham não retorna ao cinema. Vai para a construção de casas ou piscinas. Depois que se tem três ou quatro, não há mais muita coisa a fazer. A ambição dos esportistas é a mesma dos homens de negócios. Mas não se pode generalizar e é isso que torna o indivíduo esportista mais interessante do que os outros. Pergunta - O sr. jamais se sentiu tentado a fazer um filme sobre esporte?
Resposta - Eu teria gostado muito de filmar uma partida de tênis, mas levaria um ano para fazê-lo... Eu me propus a fazer a Copa da França de futebol ou Roland Garros. Começaríamos com as qualificações, depois a câmera acompanharia o jogador desembarcando em Paris, sendo admitido às qualificações, mas morando num hotelzinho pequeno, e depois, cada vez, acompanharíamos o vencedor. Há pouco esporte no cinema, o esporte não é um valor dramático, mas o interessante é o valor documental. Acontece que o documentário deixou de existir.
Pergunta - Existe um bom filme sobre esporte?
Resposta - O único filme que foi bem filmado sobre esporte, infelizmente, é um filme nazista de Leni Riefenstahl sobre os Jogos de Berlim, de 1936. Em todos os outros os esportistas não foram vistos. Vemos apenas homens ou mulheres correndo. Se Aouita não corre como Morceli, é filmado igual, quando na realidade é muito diferente. Tudo está por fazer.

Tradução de Clara Allain

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