São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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O interminável livro da vida de Aníbal Machado

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Ele não gostava de escrever. Tinha muita preguiça. Gostava de ouvir", diz a dramaturga e diretora de teatro Maria Clara Machado, segunda das seis filhas de Aníbal Machado (1894-1964), com quem ele fundou o teatro Tablado.
A curiosa definição partiu do próprio escritor em sua sucinta "Autobiografia", incluída agora em "A Arte de Viver e Outras Artes" (ed. Graphia): "Prefiro antes conversar do que escrever; antes ouvir do que ler. Há muitos anos venho fazendo sem querer, com enormes interrupções, um livro interminável para o qual tenho um montão de notas e que é possível seja organizado algum dia."
Já pelo título, "A Arte de Viver" –que inclui os aforismos dos "Cadernos de João", ensaios, crítica dispersa, crônicas e auto-retratos– dá a entender que espécie de obra interminável é essa a que se referia Aníbal Machado.
"Toda a vida venho reclamando a prorrogação do prazo para terminar a minha fachada. Não querem atender-me. Nem sei mais o que alegar. Terminar da noite para o dia, não posso. Mas também é aborrecido ficar sempre atrás de andaimes e caminhar para a morte antes de concluir-se a construção", escreveu nos "Cadernos de João", de 1957.
"Para mim, 'Cadernos' é o melhor livro dele. É o mais original. Foi muito difícil juntar todos os textos dispersos, que não tinham sido publicados em livro. Havia muita coisa. Ele era um homem muito amado e todo mundo pedia a ele que escrevesse. Críticas, prefácios... Ele fazia com prazer", diz Maria Clara Machado.
"Todo mundo era amigo de Aníbal Machado", escreveu Paulo Mendes Campos por ocasião da morte do autor de "Tati, a Garota", "A Morte da Porta-estandarte" e outros contos. O texto, que agora faz as vezes de prefácio de "A Arte de Viver", serve tanto de explicação para o significado do título da coletênea como para o sentido profundo dessa "construção de si mesmo", que parece perpassar todo o pensamento de Aníbal Machado: uma estética da existência.
Raros são na literatura brasileira os projetos que estabelecem essa estranha ponte entre autor e obra, confundindo-os não como explicação um do outro em reducionismos psicológicos, mas como sinônimos, exprimindo um compromisso radical da vida com a literatura: o próprio autor constituindo-se como obra.
Não é a primeira vez que a Graphia Editorial decide resgatar um desses projetos e revalorizá-lo em sua série Revisões. Em "Um Longo Sonho do Futuro", a editora havia reunido os poderosos diários e confissões de Lima Barreto, para quem a literatura deixava de ser uma expressão da vida para confundir-se radicalmente com ela: "Ah! A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela."
Em Aníbal Machado esse projeto é mais mineiro –menos desesperado, mais discreto e sobretudo muito humorado. "Por timidez, formação religiosa ou respeito humano, (o mineiro) evita oferecer aos outros o espetáculo da própria fraqueza. Não se chame a isto hipocrisia, mas decência", escreveu em "Esboço de Retrato", também incluído nesta coletânea.
Aníbal Machado preferia "conversar a escrever; ouvir a ler" simplesmente porque estava obsessivamente imbuído da construção de si mesmo como obra. Há uma honestidade e fidelidade heróicas nessa obsessão. Algo de difícil entendimento num mundo onde o marketing e outros fenômenos extraliterários parecem ofuscar progressivamente o sentido da literatura de verdade, aloprando critérios e parâmetros de sensatez.
"A vulgaridade é o que me apavora. Penso que toda a mensagem de um escritor pode comportar-se dentro de uma só obra. (...) Reputo de nível baixo ainda a nossa sociedade literária, vivendo por enquanto de equívocos e expedientes de camaradagem. A glória de um escritor não depende dessa providência, depende da força real de sua criação (...). Publico muito pouco e isso sem nenhuma idéia preconcebida. Escrevendo pouco, publicando menos, é natural que eu não tenha leitores que se possam interessar pela minha vida", escreve em sua "Autobiografia".
Os elogios de Aníbal Machado a Goeldi, de quem foi amigo, e a Walt Whitman nos ensaios incluídos em "A Arte de Viver" dizem respeito a essa fidelidade radical e irredutível entre vida e obra.
"É o canto de um homem para quem o mundo exterior existe como encarnação da idéia e do princípio de identidade. (...) 'Folhas de Relva' parece menos a imagem do mundo do que o seu próprio prolongamento substancial. Livro Bíblia. (...) Uma mulher, não sei bem se de Chicago ou Detroit, lia aos filhos as 'Folhas de Relva' para 'ensinar-lhes a viver'. (...) Dentro de 'Folhas de Relva' está um homem. E isto basta", escreve sobre Whitman.
Aníbal Machado dizia ter lido pouco na juventude "na pressa de tirar diretamente da vida o seu sentido, sem a ajuda dos intérpretes –os escritores". Também escreveu pouco. Não tinha tempo a perder. Estava construindo a sua "fachada". Estava escrevendo seu "livro interminável". "A Arte da Vida" é parte dele.

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