São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Jauss defende a importância do leitor

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

No Brasil, o carro à frente dos bois quase sempre foi norma no mundo das idéias. Assim, não causa espanto que só agora, muitos comentários e desilusões depois, já distante do apelo da moda e do "frisson" da novidade, tenha edição brasileira "A História da Literatura como Provocação à Teoria Literária".
Trata-se de uma conferência proferida por Hans Robert Jauss na Universidade de Constança (Alemanha), em 1967. Abrindo o ano letivo, o jovem professor, romanista e medievalista inaugurava uma nova e influente escola teórica, a Estética da Recepção.
A virada radical proposta por Jauss baseava-se numa constatação chã: nenhum texto foi escrito para filólogos. A ordem era voltar um pouco da atenção tradicionalmente concedida pela teoria literária ao autor, criador inspirado, e à estrutura interna do texto, para um personagem menosprezado pela crítica moderna –Sua Majestade, o Leitor.
Como uma partitura, um texto deve ser "executado", ganhar vida na interpretação daqueles que lhe emprestam mais do que olhos e ouvidos. Esta qualidade musical da literatura, anotada por Valéry e sublinhada por Jauss na "Provocação", protagonizou o debate crítico na Alemanha dos anos 70 e ganhou mundo (veja quadro).
Desde o berço, as teses básicas da nova escola marcavam uma tentativa de recuperar o prestígio e renovar os métodos da história literária em meio à maré montante estruturalista.
O desafio, segundo Jauss, estava em superar erros de paradigmas ultrapassados –modelos teleológicos, concepções da literatura como sucessão cronológica de acontecimentos ou como variações sobre essências ideais (épocas ou nações)– e, ao mesmo tempo, encontrar um meio de relacionar a consciência histórica de certo marxismo (inútil, porque determinista) ao esteticismo dos formalistas (fechados numa concepção imanentista da literatura).
Para escapar ao papel de alinhavador e arquivista de grandes nomes e fatos justapostos e de modelos idealistas, Jauss refugia-se na leitura, esse encontro entre autor, leitor e crítico, confronto dialógico que ganha corpo no momento de atualização do texto.
Mas não se trata de um processo que se esgote na psicologia individual. Ninguém se aproxima da literatura com olhos livres ou ingênuos e sim a partir de um ponto de vista historicamente condicionado. Além da consciência, mais ou menos remota, da literariedade do texto (que remete por contraste ou semelhança a modelos e obras conhecidos), o leitor sabe da distância que separa ficção e realidade e compara essas duas ordens diversas de experiência em sua leitura.
Quando cutuca o texto com vara curta, o leitor parte já armado de um horizonte de expectativas próprio. Como piscadelas significativas dirigidas ao leitor, apelos estruturais a este saber prévio inscrevem-se objetivamente na obra construindo um modelo de leitor implícito (noção desenvolvida por Wolfgang Iser).
Eis o nó da questão para Jauss: o efeito produzido por um texto pode contrariar ou reafirmar as disposições iniciais do leitor. Se a obra apenas reforça o que já existia de antemão, é banal.
Aqui a "Provocação" acompanha os formalistas: o valor estético aparece nos momentos de ruptura, na novidade de procedimentos que incitam a reflexão e minam a rotina da fruição automática e confirmadora do sujeito, obrigando-o a repensar a arte e a si mesmo.
Recorrendo a Hans Georg Gadamer, Jauss traduz em termos hermenêuticos a primeira tarefa do historiador literário: reconstruir as perguntas passadas para as quais o texto se tornou uma resposta. A operação, delicada, envolve a fusão de horizontes distintos: aquele sob o qual a obra foi criada –recomposto a partir do efeito provocado em seu público original– e os que correspondem aos diversos momentos de sua leitura.
Para não se perder no telefone-sem-fio das sucessivas recepções de uma obra, Jauss privilegia os momentos de ruptura, de redefinição de posições no horizonte das perguntas e respostas possíveis. Seu objetivo é mostrar como repercutem não apenas internamente à evolução da série literária, mas na história social e moral.
Foi no seu encalço que Jauss prossegiu seus estudos de hermenêutica literária nos últimos 30 anos, valorizando a experiência estética e a categoria aristotélica da identificação catártica como possíveis meios de emancipação do leitor, fiel às preocupações de 1967.
Desde então, muita tinta correu no debate iniciado por Jauss. Sérias e não poucas objeções foram levantadas (como a lembrança de que seu modelo de leitor acaba sendo uma construção excessivamente derivada do texto, presa a modelos que rejeita), mas não há como negar a força de sua advertência e seu impulso renovador.
Entre nós, resta torcer para que, a exemplo das edições americana e francesa, a editora se anime e componha um novo volume com ensaios teóricos posteriores e aplicações práticas do programa sintetizado na "Provocação". Análises que mostram, por exemplo, o que a estética da recepção tem a dizer ao comparar as "Ifigênias" de Goethe e Racine.

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