São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Fábrica de órgãos humanos só poupa o espírito de porco

DAVID CONCAR
DA "NEW SCIENTIST"

Num local secreto em Cambridgeshire, Inglaterra, cientistas injetam DNA humano num embrião de porco. Seis meses depois nasce Astrid, a primeira porca transgênica do mundo –filha de mãe virgem, num estábulo esterilizado, na véspera de Natal.
A esperança é que o gene implantado tornará os órgãos da porca compatíveis com o sistema imunológico humano, desse modo ajudando a resolver um dos grandes problemas da medicina de hoje: a escassez de órgãos para cirurgias de transplante.
Astrid produz filhos, a pesquisa ganha ímpeto. Mas há problemas também: os antivivisseccionistas lançam ataques e os teóricos da ética médica se inquietam.
Hoje, dois anos depois, o clã transgênico cresceu e já abrange cerca de 200 porcos. E a Imutran, a empresa responsável pelo projeto, está dando o passo seguinte –testando o que acontece quando sangue humano é bombeado por corações tirados de descendentes de Astrid. Se tudo correr conforme o previsto, testes com seres humanos podem começar em 1996.
"Está inteiramente claro que os corações dos porcos transgênicos funcionam melhor do que os de porcos normais e mostram menos sinais de rejeição imunológica", disse David White, diretor de pesquisas da Imutran. "Mas o que não está claro ainda é se o resultado vai corresponder a índices melhores de enxertos em primatas e humanos".
Se isto acontecer, as recompensas –tanto financeiras quanto médicas– podem ser consideráveis. Milhares de pessoas morrem todos os anos esperando por órgãos humanos para transplantes.
Mas antes que possa se tornar realidade, a Imutran e suas rivais precisarão vencer alguns grandes obstáculos.
Em primeiro lugar, ninguém começou ainda a traçar diretrizes sobre a ética da utilização de órgãos de animais produzidos por engenharia genética em cirurgias, e especialmente sobre como impedir experiências desnecessárias em seres humanos. Se errarem nesse ponto, os engenheiros dos porcos poderão defrontar-se com a oposição do público.
Em segundo, a lei sobre o patenteamento de animais transgênicos ainda é extremamente indefinida, dando lugar à perspectiva de uma disputa legal sobre direitos comerciais.
Mas a maior dúvida de todas é a biológica: será que a engenharia genética conseguirá produzir órgãos de animais que o sistema imunológico humano veja como "amigos" e não "inimigos"?
Por enquanto, todos estão se concentrando em produzir porcos com genes destinados a desarmar uma poderosa reação imunológica conhecida como "rejeição superaguda". Depois de transplantes convencionais, a rejeição de órgãos pode, na maioria dos casos, ser impedida com drogas –como a ciclosporina– que funcionam "algemando" as células de defesa conhecidas como células T.
Mas quando se transplanta órgãos de uma espécie em outra espécie, a rejeição é rápida e violenta demais para se apaziguada apenas com drogas. O sistema imunológico trata o enxerto mais ou menos como trataria um grupo de bactérias, desencadeando agentes que destroem as células epiteliais na superfície do órgão enxertado, ao mesmo tempo que desencadeia uma obstrução maciça das artérias que o suprem de sangue. Em questão de horas o enxerto é reduzido a uma massa enegrecida.
Porco-irmão
Roy Calne, pioneiro dos transplantes de rins e cirurgião do hospital Addenbrooke, em Cambridge, advertiu pesquisadores numa conferência em Cambridge no outono passado que não devem correr para realizar mais transplantes em seres humanos antes de possuirem maior domínio sobre a biologia que leva tais transplantes a serem violentamente rejeitados. Mas a seguir, e em tom de brincadeira, Calne previu uma nova era na cirurgia de transplantes, baseada no "porco-irmão".
Um dia, segundo essa visão, a tecnologia transgênica pode ser tão fácil e barata que todos nós podemos tomar a precaução de pagar pela criação e manutenção de um porco transgênico feito sob medida, um gêmeo imunológico em corpo de porco que poderia nos salvar em caso de acidente ou doença. Quando alguém contrai uma hepatite, o porco-irmão fornece um novo fígado; desenvolvendo o mal de Alzheimer, há um suprimento de neurônios suínos personalizados à disposição. Parada cardíaca? Não seria problema.
A idéia soa pouco provável, e por enquanto o é. Mas daqui a uma década é possível que os porcos-irmãos estejam ao alcance dos engenheiros genéticos.
Os genes que capacitam nosso sistema imunológico a distinguir tecido "próprio" de tecidos estranhos a nós e que fazem com que cada um de nós seja imunologicamente único são codificados por um trecho enorme de DNA conhecido como o "grande complexo de histocompatibilidade"(MHC). Para produzir porcos-irmãos seria preciso neutralizar os genes de MHC de cada animal e substituí-los por cópias dos genes pertencentes a cada "gêmeo" humano.
Mas até pouco tempo atrás isso teria sido impensável, por motivos técnicos. Os métodos de "nocaute" genético eram demasiado trabalhosas e imprecisas, e era possível transferir apenas pedaços relativamente curtos de DNA de um animal a outro.
Agora as coisas estão mudando. Os pesquisadores decididos a reprogramar os genes animais estão descobrindo as vantagens dos "cromossomos de fermento artificial", que podem ser usados para transferir trechos de DNA razoavelmente compridos. E isso pode revolucionar o trabalho de produção de porcos transgênicos.
No caso de Astrid, White e seus colegas a criaram injetando num embrião uma versão artificial de um gene que faz com que as células do porco tenham em sua superfície uma proteína semelhante à humana. Essa proteína funciona como uma bandeira branca, evitando que a rejeição superaguda seja ativada.
Mas a viabilidade científica é apenas uma parte da equação. Igualmente importante é sua viabilidade comercial. E é aqui que a idéia do porco-irmão pode afundar. Para os potenciais patrocinadores, animais doadores que precisam ser geneticamente preparados sob medida para cada paciente anos antes de qualquer problema médico podem parecer mais um pesadelo legal e financeiro do que uma inovação que venha a salvar vidas.
E, infelizmente, para os fãs do porco-irmão, parece que não existe qualquer opção intermediária entre criar doadores de órgãos "genéricos" –animais que poderiam ser usados por qualquer pessoa– e criar animais com genes específicos a pacientes individuais.
No entanto, a viabilidade comercial por si só não bastará para apressar o caminho dos doadores suínos genéricos do laboratório à clínica médica. Mesmo os defensores moderados dos direitos animais vão continuar a militar por uma moratória européia à manipulação genética de animais, ou pelo menos pela restrição ao patenteamento de tais animais.
Os pesquisadores dessa área de enxertos reagem a estas preocupações com ares de um elefante ameaçado por uma reles zarabatana. Eles afirmam que não existem evidências de efeitos negativos dos porcos e camundongos transgênicos produzidos até agora. E, para eles, a idéia de utilizar porcos como doadores de órgãos pode ser moralmente comparável a se comer toicinho.

Tradução de Clara Allain

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