São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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O casal que deu nome a 32 cometas

MARCELO LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Shoemaker e Levy. Esses nomes estarão nas mentes de astrônomos do mundo inteiro quando seus olhos e telescópios estiverem voltados para Júpiter.
Coração na mão, todos estarão aguardando uma rajada cósmica sobre a superfície do maior planeta do Sistema Solar.
Pelo menos 20 fragmentos do cometa Shoemaker-Levy 9 explodirão, um após o outro, sobre o corpo gasoso de Júpiter. Cada impacto desprenderá uma energia até 20 mil vezes maior do que a maior bomba nuclear detonada na Terra.
"É algo que só temos a chance de testemunhar em média uma vez em algumas centenas de milhares de anos. É claro que estamos vibrando", diz o norte-americano Eugene Shoemaker, 66, que descobriu o cometa da década –talvez do século– em parceria com a própria mulher, Carolyn, 65, e com um colunista da revista "Sky & Telescope", David Levy, 45.
Nos últimos 12 anos, Carolyn passou da condição de dona-de-casa –atividade exercida por 30 anos– para a de recordista mundial na descoberta de cometas. Sem receber um tostão, já tem 32 desses astros com seu sobrenome.
Quando os três filhos saíram de casa, Carolyn resolveu acompanhar o marido nas noitadas de caça a cometas, parte de um programa do US Geological Survey (serviço geológico norte-americano). Casada com Eugene há 43 anos, revelou-se uma habilidosa escrutinadora de chapas fotográficas.

Folha - Os srs. concordam em que o impacto do cometa com Júpiter é o evento astronômico mais espetacular deste século? Como se sentem tendo seus nomes vinculados a ele?
Eugene Shoemaker - Acho que esta é uma pretensão grande, porque houve muitos eventos astronômicos importantes, por exemplo a supernova 1987A (estrela que explodiu no ano de 1987). Foi um evento de primeira grandeza para a astronomia e a astrofísica.
Certamente é um acontecimento empolgante, algo que só temos chance de testemunhar uma vez em centenas de milhares de anos. Claro que estamos vibrando.
Carolyn Shoemaker - É bom ter nossos nomes ligados a esse acontecimento, não importa se vamos ver muita coisa ou não.
Folha - Onde os srs. vão observar os choques?
Eugene - Vamos viajar para o Instituto de Ciência do Telescópio Espacial em Maryland, onde as imagens do telescópio Hubble são recebidas. Elas serão parcialmente dedicadas ao impacto na semana de 16 a 22 de julho.
O Hubble pode obter as imagens com a melhor resolução de Júpiter. É um lugar muito especial para ver o que vai acontecer à atmosfera de Júpiter nos locais de impacto.
Folha - É possível que o impacto produza eventos dramáticos, como dotar Júpiter de um anel como o de Saturno ou de uma segunda mancha vermelha?
Eugene - É impossível que Júpiter ganhe um anel semelhante ao de Saturno, mas pode ser que surja algum anel. É bem provável que a poeira da cauda do cometa, permanecendo em órbita, se fixe em um anel muito difuso.
Esperamos que surjam algumas novas manchas, não como a vermelha gigante, mas possivelmente pequeninas manchas brancas, chamadas de "ovais brancas".
Folha - Mas o sr. acredita que alguma coisa ainda esteja visível dez minutos após cada impacto, que é o tempo necessário para que a área do choque alcance o lado visível do planeta?
Eugene - Sim, esperamos que surjam tempestades, vórtices mais duradouros, criados com o impacto pelo menos dos fragmentos maiores. Se vai ser visível imediatamente, não sabemos.
Outra coisa que poderá ser detectada são as ondas sísmicas e gravitacionais que se propagarão de cada local de impacto. Mas não serão visíveis ao olho humano, só na faixa do infravermelho.
Folha - Não há portanto chance de um grande espetáculo, como clarões de luz ou grandes cogumelos subindo da atmosfera jupiteriana?
Eugene - Há uma chance nos últimos impactos de que se possa detectar o clarão inicial que se forma quando um corpo entra na parte superior da atmosfera. Para isso, será necessário um equipamento especial que possa subtrair a luz do próprio planeta.
Pode ser que se veja também a erupção de uma bola de fogo subindo centenas de quilômetros acima do topo das nuvens, entrando no campo de visão da Terra.
Isso provavelmente não será captado pelo Hubble. A melhor chance é com a sonda Galileo.
A Galileo estará muito mais perto de Júpiter e voltada para ele de um ângulo diferente. É claro que dará muito trabalho reaver esses dados... (a Galileo está com um defeito em sua antena principal e envia dados à Terra com uma secundária, muito lentamente).
Folha - Li na revista "Time" que a sra., tendo descoberto 28 cometas, é uma recordista mundial nesse campo. Mas a sra. começou há apenas 12 anos, é isso?
Carolyn - Bem, eu comecei em 1982, mas já tenho 32 cometas.
Folha - Já, 32?
Carolyn - Sim. É um recorde no sentido de que ninguém vivo descobriu mais e de que há mais cometas batizados de Shoemaker do que com nomes de outros descobridores. Mas no século 19 Jean-Louis Pons, da França, descobriu uns 37 cometas. Ele não obteve a análise das órbitas, o que eu tenho. O número que reivindica não pode ser verificado.
Folha - Ou seja, a sra. de fato detém o recorde.
Carolyn - Sim (ri). Tenho, mas estou tentando chegar a 38, aí vou passá-lo, também.
Folha - No que se refere à observação com telescópios tradicionais, o Brasil oferece boas condições?
Eugene - Há dois impactos que serão observáveis do leste do Brasil, quando estará escuro e será possível ver Júpiter (veja horários à pág. 5).
Folha - Do ponto de vista científico, qual é o aspecto mais importante desses impactos?
Eugene - Em primeiro lugar, vai nos possibilitar confirmar modelos teóricos sobre o que acontece quando um cometa penetra uma atmosfera em uma velocidade muito alta. Há meia dúzia de grupos fazendo esses cálculos teóricos, mas eles não concordam em tudo.
Há uma série de incertezas no problema. A observação dos impactos vai fornecer uma verificação muito importante. Além disso, vai contar muito sobre Júpiter.
Se esses fragmentos forem muito pequenos, talvez não consigamos muita informação. Se forem da ordem de 1 km de diâmetro, o meu palpite, esperamos ver mudanças na atmosfera de Júpiter.
Se conseguirmos observar as ondas sísmicas e gravitacionais, vão nos contar muito sobre a estrutura interna de Júpiter.
São ondas mais ou menos semelhantes às que surgem na superfície de uma lagoa quando se atira uma pedra nela.
Mais ainda, se esses fragmentos penetrarem fundo nas nuvens de amônia e uma bola de fogo irromper de volta, no topo das nuvens, será ejetado material de uma profundidade à qual até agora nossa observação não teve acesso direto.
Por exemplo: talvez haja muito vapor d'água. Uma amostra será trazida para o alto da atmosfera de Júpiter, onde pode ser observada por espectroscopia (um método de análise química).
Folha - É líquido e certo que os impactos ocorrerão, ou pode ter havido erro de cálculo?
Eugene - Não só sabemos com certeza que eles vão se chocar, como ainda podemos dizer onde vão atingir o planeta, com margem de erro de menos de mil quilômetros, e quando. É tão certo quanto tudo o mais na ciência (risos).
Folha - O que o levou a essa busca sistemática por cometas?
Eugene - Foi um programa que comecei em 1973, com uma outra colega. Dez anos depois iniciei outro, em separado, já com Carolyn.
O objetivo era determinar a população de asteróides cujas órbitas cruzam com as de planetas, em particular com a da Terra. Fazer uma estimativa do número de objetos, de diferentes tamanhos, que estão numa órbita que lhes permite colidir com a Terra.
O trabalho principal era concentrado em asteróides, mas quando começamos descobrimos que seríamos capazes de descobrir um número substancial de cometas. Isto se tornou uma parte importante de nossos objetivos de pesquisa.
O objetivo de longo prazo é ser capaz de calcular a taxa de "craterização" na Terra e em outros planetas, assim como nos satélites de Júpiter.
Um cometa com 10 km de diâmetro atinge a Terra somente uma vez a cada 100 milhões de anos. Se for de 2 km, a chance é de uma colisão a cada 4 milhões de anos.
Folha - Não estamos correndo, portanto, um risco muito alto.
Eugene - É, mas quando se trata de crateras maiores, com 50 km de diâmetro, abertas por corpos de 5 km, os cometas é que são mais frequentes, não asteróides. O maior asteróide que cruza órbitas com a Terra tem só 9 km. O número de asteróides com mais de 5 km é pequeno. Há bem mais cometas.
Cometas é que causam os impactos muito grandes, desses que podem provocar extinções em massa de espécies.
Folha - Qual é a sua opinião sobre a proposta de desviar asteróides em rota de colisão com a Terra, por meio de artefatos nucleares?
Eugene - Acho prematuro e perigoso. O que precisa ser feito é continuar e expandir levantamentos, como o nosso, de asteróides. Ver se há algo lá fora que realmente ameace a Terra no curto prazo.
Caso se complete tal levantamento e se encontrem todos os asteróides maiores do que 1 km de diâmetro que poderiam se chocar com a Terra, iríamos descobrir talvez que há uma chance em mil de ocorrer um choque nos próximos cem anos, por exemplo. Não se trata de um risco que tenhamos de enfrentar no curto prazo.
Folha - Existem teorias de que a água, compostos orgânicos ou até mesmo seres vivos podem ter chegado à Terra do espaço exterior, a bordo de cometas e asteróides. O que o sr. acha delas?
Eugene - Acho que a evidência é muito boa. Fui um dos primeiros a propor que a água dos oceanos, alguns compostos da atmosfera e o carbono –os materiais necessários para o surgimento da vida– foram fornecidos à Terra por cometas.
É também provável que o mesmo tenha acontecido com compostos orgânicos complexos, como aminoácidos (peças básicas com que se montam proteínas). Na realidade, já sabemos que eles ocorrem em asteróides. Mas a noção de que organismos vivos foram trazidos à Terra é pura loucura.

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