São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Sparks explica transição na África do Sul

ANDRÉA FORNES
EDITORA DE EXTERIOR E CIÊNCIA

Em um artigo para uma edição de abril da revista "New Yorker" apresentando as eleições na África do Sul, Allister Sparks descreveu Nelson Mandela como um capitão, o último a abandonar o barco.
O jornalista se referia ao fato de Mandela, em 27 anos de prisão, não ter pedido para ser libertado. Ele intercedeu só por amigos.
"O que se percebe instintivamente sobre Mandela é que, assim como Mahatma Gandhi, ele sacrifica a si mesmo por uma causa."
A "causa" de Mandela, 75 anos, é o fim do apartheid, o regime de segregação racial em vigor desde 1949, quando foi aprovada a primeira medida restritiva.
Em quatro anos, ele passou de preso político a presidente, com a realização das primeiras eleições multirraciais do país em abril.
Sparks já trabalhou para publicações como a revista "The Economist" e o jornal "The Washington Post". De Johannesburgo, onde dirige o Instituto de Jornalismo Avançado, ele falou à Folha.
Em seu livro, "The Mind of South Africa - The Story of the Rise and Fall of Apartheid", o jornalista sul-africano escreveu sobre temas abordados na entrevista que se segue.

Folha - As eleições multirraciais marcaram o fim do apartheid na África do Sul. Mas quem visita o país observa que ainda existe segregação. Quando será extinto de fato o regime que separou a maioria negra da minoria branca?
Allister Sparks - Não se pode mais falar em segregação política porque todos votaram nas eleições de abril. Existe, sim, segregação social, que persistirá por muito tempo. A diferença de classes vai substituir ou se sobrepor às diferenças raciais. Haverá sempre uma classe negra inferior que continuará sendo segregada.
Folha - Mas existe também a segregação dos asiáticos, sobretudo indianos.
Sparks - Sob o regime do apartheid todos os grupos eram separados por áreas, à cada raça era designada uma área. Obviamente, isso não acaba da noite para o dia. Milhões de pessoas não podem se mudar assim de repente. Hoje qualquer pessoa pode viver em qualquer lugar porque não existem mais restrições legais. Aqueles que têm condições financeiras se mudarão antes, outros precisarão de mais tempo e haverá também aqueles que nunca se mudarão.
Folha - O sr. conhece casos de brancos e negros morando no mesmo edifício?
Sparks - Sim.
Folha - Qual é a porcentagem de negros que podem pagar para viver nas áreas até então reservadas aos brancos?
Sparks - Não saberia precisar esse número, mas existe uma classe média emergente que é multirracial. Escrevi recentemente uma reportagem sobre o subúrbio da cidade de Brakpan (localizada a leste de Johannesburgo).
É uma espécie de classe média baixa e sua população trabalha em fábricas. Do total, 25% são brancos, 25% são negros, 25% são mestiços e 25% são indianos. Áreas como essa estão mudando rapidamente. Há dois anos eram habitadas apenas por brancos.
Folha - Antes das eleições temia-se um êxodo da população branca. Ele se confirmou?
Sparks - Alguns realmente se foram, particularmente profissionais como médicos e advogados, que começaram a deixar o país na década de 60.
É mais fácil para eles porque, em sua maioria, falam inglês e não africâner e podem se mudar para países de língua inglesa. Tudo o que precisam fazer é arrumar as malas. Para um fazendeiro ou um homem de negócios a mudança é quase impossível. Poucos foram embora antes das eleições. O número que saiu depois das eleições não é significativo.
Folha - O sr. acha que não se investe mais na África do Sul?
Sparks - Como alguém pode deixar de fazer algo que nunca fez? Durante anos houve desinvestimento na África do Sul: as companhias, especialmente as norte-americanas, deixaram o país por causa das sanções impostas ao governo sul-africano. Algumas estão começando a voltar.
Folha - Quando será possível avaliar as consequências das eleições multirraciais?
Sparks - Acho que não se pode medir o tempo. O problema da África do Sul é encontrar um equilíbrio entre a necessidade de distribuir riqueza e recursos entre os brancos ricos e os negros pobres e, ao mesmo tempo, estimular o crescimento econômico e gerar empregos. Essas duas coisas não são facilmente equacionáveis.
O sucesso do processo depende da maneira como o governo vai lidar com esse cabo de guerra. Mas não posso dizer quando teremos condições de avaliar os resultados.
Folha - O sr. acredita que poderá ser sob o governo de Nelson Mandela?
Sparks - Ele está com 75 anos. Se você puder perguntar a Deus quantos anos mais ele tem de vida talvez eu consiga responder à pergunta.
Folha - Quem irá suceder o presidente Mandela?
Sparks - Será uma escolha entre o atual vice-presidente Thabo Mbeki, de 64 anos, e o secretário-geral do Congresso Nacional Africano Cyril Ramaphosa, de 41. No momento, o favorito é Mbeki.
Folha - Na sua opinião, Winnie Mandela ajudou ou prejudicou seu ex-marido?
Sparks - Por muito tempo, acreditou-se que o comportamento dela poderia prejudicar Mandela, mas agora não mais. Como a relação pessoal entre eles acabou (o casal está separado desde abril de 1992), o que quer que ela faça não atingirá Mandela.
Folha - Mas Winnie foi fundamental para a libertação de Mandela em 11 de fevereiro de 1990.
Sparks - Duvido que Mandela continuaria preso se não fosse por ela. Claro, havia a amizade casual dela com pessoas influentes, que serviu de ponte para que os contatos entre o governo e Nelson Mandela pudessem ser feitos.
Ela deu o seu apoio durante as negociações e foi importante para Mandela no período em que ele estava na prisão. Eles estavam próximos naquele momento, pouco antes de Winnie começar a se comportar como uma maluca talvez porque bebesse demais. O casamento acabou basicamente porque ela teve um caso com outra pessoa.
Winnie é imprevisível, mas só o que fizer como membro do Parlamento e como vice-ministra (de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia) pode prejudicar Mandela.
Folha - Qual o segredo do carisma de Nelson Mandela?
Sparks - Não é carisma. Carisma é um apelo magnético que se encontra no demagogo. Ele tem gravitatem, o que é diferente. Ele tem presença, autoridade, dignidade. Não é o magnetismo que empolga uma multidão.
Em discussões e negociações mostra uma extraordinária habilidade para se identificar com os outros, lembrar o nome das pessoas. Quando ele liga para a minha casa sabe o nome dos meus filhos. Nos 27 anos em que esteve preso jamais levantou a questão sobre a sua própria libertação. Negociou e apelou sempre pela libertação de seus amigos.
Essa qualidade se irradia de Mandela. É o compromisso com os outros que o assemelha a Gandhi e faz dele um líder raro. O poder pelo poder é a última coisa que interessa a Mandela.
Folha - Na sua opinião, os africâners são mais racistas do que os ingleses?
Sparks - Acho que esse é um julgamento perigoso. É preciso olhar para a história das pessoas para saber o que as faz se sentir vulneráveis, inseguras, ameaçadas ou temerosas. Isso geralmente determina o seu comportamento.
Folha - O sr. está tentando dizer que os africâners têm mais razão para temer do que os ingleses?
Sparks - Claro. Culturamente, os africâners são mais inseguros porque os ingleses pertencem a um grande grupo cultural internacional. Não estão ameaçados de extinção cultural.
Isso faz dos africâners uma espécie em risco. Por essas razões não é possível afirmar que um grupo é mais racista do que outro. A história afeta o seu comportamento de hoje. De algum modo, os africâners estão assimilando melhor do que os ingleses as mudanças em curso na África do Sul.
Folha - Como assim?
Sparks - Muitos africâners se filiaram ao CNA, incluindo Wilhelm Verwoerd (neto do criador do apartheid, Hendrik Verwoerd). A razão é que as opções deles são mais difícies. Os ingleses podem sempre ir embora se a situação ficar desconfortável, já os africâners não têm escolha.
Se forem embora deixarão de ser africâners. Essa vulnerabilidade talvez faça com que eles sejam mais racistas, mas também os obriga a aceitar as mudanças prontamente. Eles estão mais enraizados nesse lugar.
Folha - As mudanças teriam sido possíveis sem F.W. de Klerk, ex-presidente e atual vice-presidente da África do Sul?
Sparks - Sim. Poderiam ter acontecido sem ele. Outro (presidente) teria feito o que ele fez porque há várias forças levando o país nessa direção. Não havia como os brancos continuarem governando a África do Sul indefinitivamente. Mas o personagem mesmo indispensável é Nelson Mandela. Ninguém mais poderia ter desempenhado o papel dele.
Ele é único.

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