São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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Consenso do atraso

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Transformou-se em moda, entre certos intelectuais que apóiam Lula, Brizola e até Quércia, afirmar-se que a candidatura Fernando Henrique representaria o Consenso de Washington no Brasil. Ou seja, significaria o projeto de se aplicarem no Brasil as receitas econômicas neoliberais que se consubstanciaram no Consenso de Washington de 1989.
Nesta Folha, no caderno Mais!, esta perspectiva foi apresentada com grande estardalhaço. Não apenas Fernando Henrique Cardoso seria um conservador neoliberal, mas seu plano de estabilização –o Plano Real– também seria uma manifestação daquele consenso.
Minha primeira reação, quando li tais sandices, foi ignorá-las. Revelam um tal desconhecimento do que seja o neoliberalismo e indicam um tal apego a idéias arcaicas, a um nacional-desenvolvimentismo esquerdista dos anos 50, que não pude evitar a sensação de estar diante de um consenso do atraso. Atraso misturado a razões eleitorais.
Entretanto, é preciso admitir que a identificação que esse tipo de esquerda, populista e fora do tempo, vem fazendo de políticas e reformas econômicas sensatas, extremamente necessárias para o Brasil, com o neoliberalismo, é um fenômeno mais generalizado.
Transformou-se, na verdade, em uma estratégia retórica dessa visão nacionalista, para a qual tudo o que não estiver de acordo com seu velho figurino é neoliberal.
Em contrapartida, a direita, os verdadeiros defensores do Consenso de Washington, chamam de populista toda política que não se enquadre nas idéias conservadoras do Consenso de Washington de 1989. Diante do radicalismo dos dois lados pareceu-me necessário um esclarecimento.
A candidatura Fernando Henrique surge no Brasil como uma síntese entre a visão nacional-desenvolvimentista e as idéias neoliberais do Consenso de Washington. Uma síntese social-democrática e pragmática.
O nacional-desenvolvimentismo e a teoria da dependência esgotaram suas virtualidades com a crise dos anos 80. O neoliberalismo, por sua vez, embora tenha tido o senso de oportunidade de criticar corretamente as distorções sofridas por um aumento descontrolado do Estado, é uma visão conservadora, que acredita no mercado como um instrumento milagroso de coordenação econômica, e que tem como objetivo utópico o Estado mínimo.
Logo após esse consenso ter se definido, em Washington, em 1989, tomei conhecimento dele, e o critiquei por seu irrealismo e conservadorismo, e por se pretender ser a única alternativa ao nacional-desenvolvimentismo populista (foi minha aula magna na Associação Nacional de Pós-Graduação, em Brasília, dezembro de 1990, publicada em meu livro "A Crise do Estado").
Dizia, por outro lado, que o Consenso de Washington não podia pretender o monopólio de políticas e reformas econômicas orientadas para o mercado, nem da disciplina fiscal, porque estas eram simplesmente medidas econômicas corretas, essenciais para a estabilização e a retomada do desenvolvimento.
Hoje, cinco anos depois, o Consenso de Washington ou o neoliberalismo conservador é uma ideologia em franca retirada no Primeiro Mundo.
Em Washington, desde que Clinton foi eleito, começou a ser abandonado pelas agências multilaterais. No Leste europeu o triunfalismo neoliberal é coisa definitivamente do passado, enquanto se buscam soluções social-democráticas e pragmáticas, do mesmo tipo que existem na Europa Ocidental e no Japão.
No Brasil, o neoliberalismo nunca foi dominante. Nem mesmo no tempo de Collor, que se perdeu pela corrupção e pela incompetência das políticas de estabilização que adotou.
Neoliberalismo não é ser a favor de disciplina econômica e reformas orientadas para o mercado, mas acreditar que o mercado possa ser o único coordenador da economia. O verdadeiro neoliberalismo é contra qualquer intervenção do Estado da economia. É contra política industrial e tecnológica, e até mesmo contra política social.
O Brasil jamais se deixou levar por semelhante dogmatismo de direita, mas não pode também continuar vítima de um nacional-populismo tacanho e arcaico, que quer condenar o Brasil ao atraso.
A causa fundamental da crise brasileira é a crise do Estado. É o fato de o Estado, que era o grande agente do desenvolvimento, ter-se transformado em um obstáculo ao mesmo. Obstáculo porque faliu, perdeu crédito, e deixou a inflação explodir. Obstáculo porque sua forma de intervenção –a substituição de importações– esgotou-se como estratégia de desenvolvimento. Por isso a perspectiva social-democrática e pragmática, que a candidatura Fernando Henrique representa, tem como principal objetivo reconstruir o Estado. Reconstruir suas finanças, recuperar sua burocracia, redefinir suas estratégias de intervenção, que serão complementares ao mercado ao invés de substitutivas dele.
Nesta estratégia não há nada de neoliberalismo, não há nada do Consenso de Washington, que foi definido tardiamente em 1989, quando a onda neoliberal e conservadora já estava perdendo força.
Dentro desse quadro, o Plano Real não tem absolutamente nada a ver com o Consenso de Washington. Este foi representado, no Brasil, pela política de estabilização adotada pelo Brasil no governo Collor, que foi monetarista em 1990 e monetarista e gradualista em 1992.
O Plano Real está baseado em uma teoria neo-estruturalista da inércia inflacionária, que Washington jamais teve capacidade de pensar.
Por que, então, acusar o Plano Real de ser um plano neoliberal? Por falta de argumento dos defensores dos demais candidatos à Presidência da República, que jamais foram capazes de apresentar uma alternativa real à adotada pela equipe de Fernando Henrique. Por essa mesma razão acusam o plano de eleitoreiro, quando este é o plano mais completo e com melhores chances de sucesso que o Brasil já teve.
Precisará, entretanto, ser consolidado no próximo ano. E para isto todos sabem, inclusive os críticos fora do tempo e do lugar do Consenso de Washington, que ninguém será mais competente que o próprio Fernando Henrique.

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