São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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As remarcações e a lógica política do Plano Real

JOÃO PAULO DOS REIS VELLOSO

Antes do plano de estabilização, geralmente se atribuía a uma falta de vontade política, do Congresso ou da sociedade, o fato de que o Brasil não fazia um esforço heróico de livrar-se da inflação selvagem.
A explicação real era mais complexa. E dizia respeito, principalmente, à existência de uma lógica política, no período do cruzeiro real, que dificultava a mobilização do sistema político e da sociedade para agir decididamente contra a inflação.
Essa lógica residia, essencialmente, em que, mesmo com elevações mensais de preços de 45%, a maioria dos agentes econômicos dispunha de um considerável grau de proteção contra a inflação (quando dela não se beneficiavam).
Em particular, para as empresas –operando sem controle de preços–, as perdas trazidas pela inflação selvagem só se faziam sentir significativamente no longo prazo, e sob uma forma genérica: a perda do crescimento estável e a recessão, significando haver-se a inflação convertido em "jogo de soma nula ou negativa" para o país. Quer dizer, a estagnação do seu mercado.
Desta forma, o ataque frontal à inflação, para elas, significava o ganho de um "bem público" (no jargão dos economistas), ou seja, a reconquista do crescimento, de efeito menos imediato, mediante a possível entrega de um "bem privado", de seu interesse direto, correspondente à eventualidade de choques e perdas de curto prazo, conforme a natureza do plano de estabilização a ser implantado.
É verdade que, para os assalariados de classe média, o desvario inflacionário vinha significando perdas diretas, devido às políticas salariais adotadas nos últimos anos. Mas eles se defendiam, aplicando a poupança, ou quaisquer reservas de caixa, no mercado financeiro, ao lado da expectativa de obter reposições, por ocasião do dissídio da categoria.
Entretanto, mais que isso, temiam os assalariados que o plano de estabilização se fosse fazer às suas custas, e por isso só o apoiavam temerosamente.
Desprotegidos mesmo estavam eram os pobres não-organizados. Mas esses, por definição, não se organizavam politicamente.
Vê-se, por conseguinte, que a lógica política da situação pré-plano de estabilização conduzia a apenas um apoio morno (e dividido) da maioria da sociedade em seu favor.
Como é, então, que aconteceu o Plano Real, nas suas três etapas? Essencialmente, ele nasceu de um ato de vontade política do governo (pressionado, sem dúvida, por certo desejo social de que algo acontecesse). A ele não se opôs o Congresso, e logo se manifestou o apoio crescente da população, principalmente após a implantação da URV.
Agora, para dar certo, a estabilização depende de uma reversão da lógica política anterior, que, por sua vez, depende do preenchimento de duas condições: minimização das perdas para os diferentes agentes sociais (salvo se os perdedores foram os que antes, mesmo involuntariamente, se beneficiavam da inflação, como o governo e o sistema financeiro), e não concessão de salvaguarda a qualquer categoria (ou seja, a ninguém se deve dar a garantia prévia de que não vai ser afetado por uma eventual ressurgência inflacionária).
O Plano Real atendeu razoavelmente a essas duas condições.
De um lado, evitaram-se choques, rompimento de contratos e transferências violentas de renda de um segmento social para outro (o plano revelou perdas já existentes, como no caso dos aluguéis, mas não as provocou).
De outro, não se deu gatilho aos salários, proibiu-se a indexação de contratos por período inferior a um ano, sustou-se o reajuste de tarifas públicas por prazo indeterminado. O próprio câmbio ficou estabilizado.
Como resultado, parece haver-se criado um importante fator de apoio para a reversão da lógica política: os diversos segmentos se sentem desprotegidos e começam a se virar, para evitar que os preços disparem e os empobreçam. A reação dos consumidores às remarcações do comércio varejista são um exemplo disso.
Esse é um bom ponto de partida. Sem embargo, o sucesso só estará garantido, no tocante às remarcações, se a sociedade, através do governo e dos consumidores, soube fazer funcionar um sistema de prêmios e castigos em relação ao comércio e à indústria. Qualquer abuso deve ser punido, mas através de sanções econômicas (e não de ameaças ou prisões).
Só assim se conseguirão duas coisas. Primeiro, evitar que a autoridade tenha de recorrer ao arrocho monetário, causando uma recessão, para conter a demanda global. Segundo, mostrar que desejamos uma economia de mercado, sim, como opção clara. Mas um mercado competitivo e compatível com a razoável estabilidade de preços.

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