São Paulo, domingo, 10 de julho de 1994
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GUERRA E PAZ

CONTINUAÇÃO

Emir decidiu então pegar o tal corredor sérvio à noite, contando com a iluminação precária da estrada, que dificultaria a visão dos guardas. A sorte é que, com o inverno no auge, havia poucos postos militares. No percurso, feito de carro, foi parado uma vez e liberado. Levou três dias. Perdeu 6 quilos.
Já em Belgrado, o trio encontrou uma amiga de uma amiga que morara no Brasil e que recomendou o país. "Poderíamos ter ido para Inglaterra ou França, mas, com o crescimento do fascismo, a situação não ficou boa para refugiados." Dirigiram-se então à embaixada brasileira na cidade e pediram asilo. Conseguiram um visto de turista de dois meses.
Desembarcaram no Rio de Janeiro no dia 24 de fevereiro deste ano, "num calor de 38 graus", lembra-se. Europeus formais, demoraram cinco dias até procurar um conhecido da amiga da amiga em Belgrado. "Qual não foi minha surpresa ao ligar para esta pessoa e ouvir um 'Que maravilha!"'.
Hoje o casal mora num apartamento na Lapa, pelo qual paga de aluguel US$ 140 dos US$ 200 recebidos da ONU. O visto de turista já venceu e eles aguardam os documentos definitivos de Brasília –sem os quais não podem trabalhar legalmente.
Mas não reclamam. "Em Belgrado, me diziam que o Brasil estava mal, tinha muita inflação, pobreza...", ri-se Tatjana. "O que encontrei foi um povo bom, que me ajuda todos os dias". Svletana ganhou uma bolsa de estudos no colégio carioca Bennett, onde cursa a 5ª série. A família recebeu camas, sofás, rádio, televisão e geladeira dos vizinhos do prédio.
De Banja Luka, Tatjana sente falta de seus 2.000 livros, dois violinos e um piano. Svletana tem saudade "dos amiguinhos". Filha do primeiro casamento de Tatjana, com um maestro atualmente refugiado na Alemanha, a menina é tímida e retraída.
Mas Svletana gosta do Brasil, principalmente na hora de dormir. Os barulhos de tiros e bombas deram à menina uma insônia só curada aqui. Agora, ela só se assusta com sirenes –constantes no Rio– e bombinhas de São João. Memórias da guerra.
A família não fala português. Os três assistem a aulas pagas pela ONU. Tatjana já entende alguma coisa e reconhece palavras similares –"simpático", por exemplo. "No Brasil, estou reescrevendo meu dicionário íntimo, com novos significados para as palavras país, liberdade, paz", diz. "Tantas palavras velhas com significados novos...". A palavra guerra está fora.

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