São Paulo, terça-feira, 12 de julho de 1994
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Will Self inventa metamorfose sexual

BERNARDO CARVALHO
DA REPORTAGEM LOCAL

Uma mulher descobre um pênis nascendo no interior de seu sexo. Um homem descobre uma vagina atrás de seu próprio joelho. Um outro discorre durante um jantar sobre sua melhor idéia de diversão: esquartejar a própria mulher grávida.
São alguns dos personagens criados pelo inglês Will Self, 33, em sua psicopatologia satírica da vida cotidiana na Inglaterra pós-Thatcher.
Antes de se tornar escritor, Self foi cartunista do jornal "The New Statesman", desenvolvendo esboços de situações atrozes e personagens de horror que iriam ganhar maior profundidade no humor negro de sua literatura.
Em apenas três livros publicados em 91, 92 e 93, Self se consagrou como uma das vozes mais originais e mordazes da jovem literatura inglesa –Salman Rushdie o incluiu na lista dos 20 melhores escritores britânicos com menos de 40 anos feita pela prestigiosa revista "Granta".
Self vem a São Paulo para a Bienal do Livro, a ser inaugurada dia 17 de agosto. Na ocasião, a Geração Editorial lança o primeiro livro do autor no Brasil: o alucinante "Cock and Bull - Histórias de Phadas e Phodas", de 1992 (leia texto abaixo).
Self concedeu a entrevista a seguir, por telefone, de Londres.

Folha - O que fez você passar do cartum para a literatura?
Will Self - O cartum é uma forma muito comprimida; não permite que você lide com idéias de uma maneira mais aprofundada, como a prosa de ficção. Mesmo um bom cartum está restrito a um número limitado de inovações que você pode fazer dentro do meio. Eu havia esgotado essas possibilidades.
Folha - Você acha que a ironia pode servir como uma forma de renovação literária num período de crise cultural?
Self - Você poderia dizer que a ironia e a prosa satírica são um traço perene do tema cultural inglês e é provável que fiquem mais em evidência durante um período decadente da cultura. Acredito ser esse o caso hoje na Inglaterra.
Folha - Você já disse que era influenciado por Woody Allen. Era uma piada?
Self - Certamente não. Estava sendo sincero. Minha mãe era uma judia de Nova York. Fui educado por ela, na Inglaterra. Crescemos sob a influência dos grandes humoristas americanos, como Groucho Marx, S.J. Perelman e mesmo Woody Allen. Sempre me vi como tendo uma certa escuridão no meu humor, o que é muito tributário do humor judeu e da Europa Central, assim como da ironia inglesa. Sempre admirei as paródias que Allen faz da "intelligentsia".
Folha - No seu novo livro, "My Idea of Fun", você escreve sobre o mal. Qual a relação entre perversão e humor?
Self - O humor negro existe para que as pessoas não precisem ser submetidas às perversões. Não diria, de um ponto de vista freudiano simplista, que o humor é apenas um cano de escape para pressões inconscientes que poderiam se manifestar de outras formas. Mas acho que há muita verdade nisso. Nesse sentido, Freud chegou a dizer que não havia brincadeira. As brincadeiras podem se transformar em coisas muito sérias, sobretudo quando lidam com a capacidade da mente humana de ser má.
Folha - Você já leu Freud? Sente alguma influência da psicanálise no que escreve?
Self - Freud teve um enorme impacto em toda a literatura do século 20. Tornou-se menos possível para um escritor acreditar na autenticidade do perfil psicológico dos personagens desenvolvidos pelo romance do século 19.
Para além disso, mantenho uma grande ambivalência em relação tanto ao pensamento quanto ao texto de Freud. Ele representa ao mesmo tempo uma liberação colossal e uma enorme depreciação de alguns dos aspectos mais dignos e respeitáveis do homem.
Folha - Como as feministas e os militantes homossexuais receberam "Cock and Bull"?
Self - Pouquíssimos críticos reagiram ao livro como sendo misógino ou homofóbico. No geral, até a mais idiota e ideologicamente engajada das pessoas, que se considera feminista ou militante gay, reconhece que, se tivesse que atacar o livro como antifeminista ou antigay, estaria se expondo ao ridículo. Não há nada disso no livro. Se ele é anti alguma coisa, essa coisa são alguns aspectos do politicamente correto.
Folha - O que você acha da militância de minorias?
Self - Tendo a apoiar todas as minorias que lutam para obter o legítimo direito que lhes é devido. Em certo sentido, continuo sendo um marxista, porque acredito que muito da retórica sobre o que as pessoas dizem, sobre o que deve ser dito, é irrelevante. O que precisa ser feito na sociedade é melhorar a condição econômica e os direitos sociais das minorias, e não falar sobre isso.
Folha - Você traça um retrato bastante imbecilizado da sociedade inglesa e dos ingleses em "Cock and Bull". Você acha que essa imbecilidade é causa ou efeito da era Thatcher?
Self - Acho que isso já estava lá antes de Thatcher. A contribuição dela foi cristalizar essa situação. Não acredito que toda a sociedade ou cultura inglesa seja imbecil ou impotente como descrevo no meu livro. Procuro retratar um estrato da sociedade que na Inglaterra é muito poderoso ao projetar uma imagem do país tanto dentro dele como no exterior. Há muita coisa interessante na Inglaterra, mas normalmente fica encoberta, porque quem controla a mídia divulga uma outra imagem.
Folha - Ao ler "Cock and Bull", tem-se a impressão de que a ironia permite que você descarte qualquer tipo de compromisso ou engajamento. Há uma distância ostensiva em relação ao que é descrito.
Self - Toda a sátira profunda está engajada na causa da reforma moral. Não faz parte do trabalho do satirista sério apresentar às pessoas causas ou respostas fáceis em que possam se agarrar. O trabalho do satirista é provocar seu leitor a reexaminar suas convicções. Se surgisse uma situação em que me parecesse válido abandonar a minha falta de engajamento direto, eu a abandonaria. Mas, no geral, hoje, na Inglaterra, não me engajo em causas específicas.
Folha - Há um tipo de literatura americana, como foi o caso com Bret Easton Ellis, que tenta representar o horror sexual como uma forma de escandalizar. É uma literatura bastante calculada, orientada pelo mercado. Você pensava no mercado quando escreveu "Cock and Bull"?
Self - Não acho que Bret Ellis tenha escrito "American Psycho" com qualquer tipo de mercado em mente. Para mim, é o melhor romance americano dos últimos cinco ou dez anos. Ele expõe a superficialidade absoluta do consumismo americano e seu anti-humanismo. Acho que é um livro muito engraçado, que faz você se contorcer, ao mesmo tempo, de rir e de repulsa. É uma rara proeza.
Também não penso no mercado. Escrevo para minha diversão. Se não escrevesse dentro dessa perspectiva, tenho certeza de que meus livros seriam um fracasso. Além disso, não acho que os livros de Bret Ellis e os meus sejam lidos por pervertidos ou sádicos. Quem comete atos de sadismo não precisa ler romances para cometê-los.

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