São Paulo, quinta-feira, 14 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O fardo do fardão

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Frequento pouquíssimo a Academia, ao longo de uma vida, três, quatro vezes no máximo. Na posse de Callado, anteontem, contemplei os imortais e me lembrei de um caso que o Otto Lara Resende gostava de contar. O mestre Aurélio Buarque de Holanda meteu-se no fardão e entrou num táxi. Deslumbrado, o motorista perguntou: "Sois rei?"
Mestre Aurélio não era rei, mas em outro lance também entrou num táxi e pediu: "Depressa, moço, que estou atrasado!". O motorista entendia a vida. Sossegou o mestre: "Fique tranquilo. Seja quem for, com essa roupa que está usando nada começará sem o senhor!"
E há o caso do Magalhães Jr. Ele morava na Mascarenhas de Moraes, quase esquina com Barata Ribeiro. Em noite de posse, saiu fardado com tudo a que tinha direito: tricórnio, plumas, fardão, capa nobre e espada maior do que ele, arrastando pelo chão. Em frente a seu prédio há uma lanchonete de muito movimento, o dono, português recém-chegado, na caixa registradora, anotava os pratos que saíam da cozinha.
Garoava. O português está registrando um filé com fritas quando olha em frente e, súbito, vê o Magalhães Jr. saindo das trevas em direção ao táxi! Atônito, o português tinha o dedo espetando o ar para bater na tecla da registradora e assim ficou, imóvel, esgazeado.
Diante daquela visão, sofreu fulminante paralisia mental e corporal. Rezam as crônicas que, deitado na maca que o transportou para a ambulância, o dedo continuava espetando o ar, como se registrasse uma aparição mágica numa registradora sobrenatural.
O mundo nunca mais foi o mesmo para ele. Ele também nunca mais foi o mesmo. Conheci-o anos depois, ficava andando na calçada de um lado para outro, volta e meia olhava na direção fatal. Os filhos tomaram conta do negócio, tentaram convencê-lo a voltar para o Minho. Ele recusava, fiel e obstinado. Não podia deixar aquela calçada, andando de um lado para o outro, em silêncio, sabendo que, depois daquela visão, tudo o que lhe acontecesse seria lucro.

Texto Anterior: Ética não tem ideologia
Próximo Texto: O PT sabia
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.