São Paulo, sexta-feira, 15 de julho de 1994
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Nova música surge da falsa espiritualidade

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Ocompositor polonês Henryk Górecki chegou hoje pela manhã ao Brasil, convidado pelo Festival de Campos de Jordão. Já comentei sua música, feita de trêmulos emocionais e de ultratonalidade, num artigo anterior.
Por sua vez, um CD de canto gregoriano atingiu, há pouco, o pico na lista dos mais vendidos.
O quarteto Kronos faz da modernidade e da vanguarda um caminho para o sucesso.
Há um violinista de música clássica que, com o cabelo arrepiado, aparece para o público com o mesmo poder de um astro pop.
O minimalismo de Steve Reich e Philip Glass inferniza, com seu dinâmico chiclete sonoro, a trilha de filmes ecolojóides como "Koyannisqaassi", ou pós-modernos como "Caravaggio".
A rádio Cultura FM dá oportunidades a tudo o que é etnomúsica –os ritmos da Nova Zelândia, os tantãs da África– e ao que é música "new age" –as vibrações "meditativas" de um compositor junguiano, as pasmaceiras melódicas de um zen-budista da Califórnia.
Quando não é isso, temos os arranjos de Jean-Pierre Rampal com acompanhamento de harpa sobre canções tradicionais japonesas.
Imagino que algum fenômeno se esconde atrás de tantas manifestações. O sucesso de Górecki e do CD de canto gregoriano, pelo menos, não me engana.
Trata-se, é claro, de uma reação ao rock. Em vez da barulhada, da agressividade histérica e postiça dos conjuntos americanos, procura-se algo de mais "espiritual", mais "suave" e "contemplativo".
A Sinfonia de Górecki é um verdadeiro show de sonoridades kitsch, um relaxo completo. O CD de música gregoriana oferece aos ouvintes muita calma depois de um dia de trabalho.
Não é só reação aos barulhos da música pop. É também reação às dissonâncias da música erudita moderna. Ambas –o rock e Edgar Varèse, a discoteca e Boulez– são barulhentas demais.
Surge, então, um público disposto a ouvir alguma coisa mais soporífera e calmante. A pós-modernidade, com seu yuppismo, com seu conformismo, com sua falta de interesse intelectual, se manifesta na moda que toma de assalto a música contemporânea.
Como em toda pós-modernidade, há alguma coisa de falso nesse fenômeno.
No caso dos cantos gregorianos e de Górecki, verifica-se um interesse que não é puramente musical, que não está inscrito na lógica e nos termos da composição erudita.
Estamos diante de um fenômeno violentamente antiestético. No sentido de que, acima das considerações artísticas, o que se vende é uma espécie de atitude espiritual. Busca-se um lenitivo, uma anestesia mística.
Ortega y Gasset, para explicar a arte moderna, falava de sua independência face a todos os sentimentos humanos. O "específico" da arte, sua referência à linguagem e não às emoções humanas, seu poder de descobrir coisas, contra as expectativas do público, seu caráter, digamos assim, de verdade e de imanência, sua essencialidade, sua pureza, sua intransitividade, afirmaram-se como nunca no modernismo.
A esta altura, desconfio um pouco da interpretação de Ortega y Gasset. O modernismo, segundo ele, seria uma exacerbação do princípio da "arte pela arte". O que significaria, em última análise, que as grandes sinfonias de Beethoven, os concertos de Mozart, os caprichos de Brahms, padecem de certa contaminação emocional, de um excesso de romantismo, de um "quantum satis" de humanidade. De gordura humana.
Mas isso é sinal de que estamos ouvindo Brahms ou Beethoven de forma puramente emotiva. O que é ótimo, aliás. Mas, se intelectualizarmos nossa escuta, se prestarmos atenção à engenharia composicional de cada compositor, percebemos o quanto de imanente, de "arte pela arte" está presente no estilo e na forma de cada um.
A grandeza dos grandes compositores –se posso me exprimir assim– está no fato de que, referindo-se à linguagem, abstraindo-se de qualquer emoção banal, são ao mesmo tempo extremamente "humanos".
Uma expansão de espírito se liga à expansão que produzem nas convenções e formas da linguagem. Ouvir Chopin, por exemplo é saber que nesta terra existiu um grande coração. E que esse homem de grande coração tinha, além disso, um grande cérebro.
Talvez seja isso o que mais me encanta e convence quando ouço música clássica: a possibilidade de que o maior refinamento intelectual se alie ao maior espectro emotivo. De que o máximo de complexidade na linguagem se junte ao máximo de emoções, terrores, fraquezas, doçuras de alma.
É assim que, ao julgar determinada obra-de-arte, não ficamos restritos apenas a uma questão de habilidade técnica, ou à presteza do espírito crítico que tenha cada artista. Estamos julgando, na verdade, a grandeza de sua alma, ao lado da extensão de sua inteligência. Estamos julgando o homem, não o manipulador mais ou menos feliz de uma linguagem específica.
A "desumanização da arte", para lembrar o livro de Ortega y Gasset (ed. Cortez 1991), nunca significou a desumanização do artista. A impessoalidade voluntária de Stravinski, nos seus pastiches neoclássicos, nunca anulou o gesto físico, a corporalidade, a felicidade íntima do autor.
Mas tudo isto é uma enorme digressão. Volto ao tema inicial, o de Górecki e dos cantos gregorianos.
Estamos às voltas com uma desarticização da arte. Como sempre, a música é a vítima mais sensível.
No retorno à tonalidade proposto por Górecki, na regressão explícita dos cantos gregorianos, no ambiente "cool" que toma conta das produções musicais hoje em dia, no nhenheném dos mininalistas, vejo uma única pretensão: a de fazer, da música, um coadjuvante emocional, um elemento a mais, decorativo, no ambiente.
Toda música se torna, assim, "música de fundo". Só não é música de fundo quando concede a outras funções secundárias: ser música de dança, ser música popular de recordação emocional para o ouvinte que se lembra dos "bons momentos" que viveu quando tal ou qual canção de Caetano estava na moda.
Um livro inteiro teria de ser escrito sobre "a desestetização da música". Tornou-se um bem de consumo, um objeto de fundos musicais. Ou então tornou-se barulhada, seja no rock, para fins de dança, seja no ambiente erudito, para fins de pesquisa linguística, científica.
A falsa "espiritualidade", a burrice "mística" dos dias de hoje, aceita Górecki, gregorianos, minimalistas. A falsa intelectualidade do momento aceita barulheiras, inovações sonoras, serialismos e minimalismos.
A verdadeira música sai perdendo.
Desaparece enquanto obra intelectual, desaparece enquanto demonstração de grandeza emocional. Górecki vende CDs. Prefiro Rachmaninov. O canto gregoriano vende CDs. Prefiro Bach. Eles eram mais inteligentes. Eles eram, também, espíritos mais completos. Eles eram, finalmente, umas belas almas. Claro que Bach era uma alma e um intelecto superiores aos de Rachmaninov. Mas, pelo menos, a competição se dá no mesmo nível. E as demagogias de Rachmaninov não são nada, perto das demagogias atualmente em vigor.

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