São Paulo, segunda-feira, 18 de julho de 1994
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Górecki diz que não compõe para a a massa

LUÍS ANTÔNIO GIRON
ENVIADO ESPECIAL A CAMPOS DO JORDÃO

Música é uma arte abstrata que dispensa explicações, muito menos o entendimento da massa. Assim pensa o compositor polonês Henryk Mikolaj Górecki (pronuncia-se gurétski), 60, hoje o mais popular mestre contemporâneo, autor de 64 opus ao longo de 29 anos de carreira.
Ele falou à Folha na noite de sexta-feira, depois de uma viagem atribulada entre São Paulo e Campos do Jordão.
O motorista se enganou de trajeto e levou mais de quatro horas para chegar à serra. Ele veio com a Orquestra Sinfônica da Rádio Nacional Polonesa, que fez anteontem a "première" no Brasil de sua "Sinfonia nº 3". Foi esta a obra que ejetou Górecki à glória. Apesar de ter sido composta em 1976, ela chegou às paradas de sucesso em maio de 1992, na versão em CD (Elektra Nonesuch) da London Sinfonietta e da soprano norte-americnaz Dawn Upshaw.
Em março de 1993, a gravacao atingia o primeiro lugar na parada pop inglesa e permaneceu em terceiro lugar durante 36 semanas na parada clássica da revista "Billboard". Ganhou dois prêmios Grammy (melhor disco e melhor disco orquestral de 1992). Vendeu perto de 1 milhão de cópias até a última semana.
Apesar de alguns críticos e mesmo de compositores como o francês Pierre Boulez terem criticado a obra, chamando-a de "música para empregadas" ou "kitsch", a "Sinfonia nº 3" nada tem de intrinsecamente acessível. Os seus três movimentos lentos (Lento, Lento e Largo e Lento) reúnem as características da linguagem do compositor: escalas modais misturadas com atonalismo em alta tensão harmônica, estruturas claras, notas longas e ambiguidade expressiva.
A moda esotérica e new age, porém, ajudou as vendagens das obras de Górecki. Hoje há público receptivo até para fraudes gregorianas. Mas se a "Terceira" parece hipnótica, a "Primeira" (1959) ou o "Epitaphium" (1959) para coro e orquestra, ou mesmo os dois quartetos de cordas, compostos nos anos 90, soam complexas e ásperas. O contraponto cerrado se reveza com notas em pedal. Como se o serial Webern contivesse o romântico Brahms. Górecki é um sacerdote da música pura. Tanto que nunca compôs óperas.
Por todas essas razões, Górecki não acredita que sua obra seja entendida pelo grande público. Discípulo de Szymanówski, compositor polonês nacionalista e modernista, fã de Bach, Messiaen e Mozart, Górecki é católico fervoroso. Mas não gosta de ver religiosidade em sua música. "O que é religião? Será que um lied de Schubert é menos religioso do que uma missa? Será que a 'Nona' de Beethoven é menos religiosa que a 'Missa Solemnis'?"
O compositor odeia viajar. Diz que aceitou o convite do Festival de Campos do Jordão porque ama o Brasil. "Milagres acontecem, estou no Brasil!", exclama.
Ao chegar ao hotel, ele pediu para trocar de quarto porque queria ficar com seu filho, Mikolaj, de 23 anos, também compositor. Mas se arrependeu quando percebeu que seria vizinho de quarto de uma mulher que achou muito bonita. Era a atriz Regina Duarte, que ele conheceu naquela noite.
Ele volta à Polônia amanhã à noite. Na entrevista abaixo, Górecki explica por que nunca gostou de vanguarda e vice-versa.

Folha - Como foi sua relacão com a escola de Darmstadt? O sr. teve um pequeno flerte com a vanguarda nos anos 60, não?
Henryk Górecki - Passei três dias em Darmstadt durante uma viagem que fiz a Paris com minha mulher em julho de 1963. Não houve flerte. Pelo contrário, quis sair de lá o mais rapidamente possível. Tanto que voltei para Paris. Nunca aceitei os cânones da vanguarda, ditados por Darmstadt. Sempre escrevi do jeito que quis escrever, sem que ninguém desse palpite.
Folha - Mas naquele tempo havia semelhanças entre suas composições e as da vanguarda. O sr. não aproveitou nada de Darmstadt?
Górecki - Para mim, Darmstadt poderia não ter existido. Achava aquele negócio de pontilhismo, serialismo e superdodecafonismo uma coisa idiota, normativa. Aproveitei porque tomei contato com a obra de Webern e Schoenberg. Descobri que eu compunha como os pós-serialistas. Basta ouvir minha "Sinfonia nº 1", "Epitaphium" e "Scontri" (1960).
Folha - Por que Boulez e Stockhausen criticam sua obra?
Górecki - Nos afastamos. Eles gostavam de minhas partituras no início. Quem mais me incentivou foi Luigi Nono. Stockhausen esteve em Varsóvia em 1958, ouviu "Epitaphium" e gostou. Me lembro até hoje do que ele disse, uma frase bem sintomática do comportamento da vanguarda: "Muito bem, muito bom, mas a obra deveria ser mais cinzenta. É muito emocional. Deveria ser mais homogênea, fria". Tudo o que eu não queria fazer.
Boulez foi à Polônia foi ouvir meu "Concerto para Cinco Instrumentos e Quarteto de Cordas" (1957). Gostou. Ouviu "Epitaphium" e gostou. Mas em 1959 não entendeu a "Sinfonia nº 1". Segui para um outro lado. Hoje eles dizem que eu faço música de empregada. Eu não troco uma cancão de Schubert por toda a obra de Boulez e Stochkausen juntos.
Folha - Por que a vanguarda fracassou?
Górecki - Não fica bem eu falar mal deles. Mas acho que é ruim fechar a música numa certa quantidade de leis. Parece que só Boulez e Stockhausen sabem como escrever música. Para mim arte é arte. Mozart fez música porque deixou a escola italiana na gaveta. É por isso que ele é melhor que Salieri.
Conheço professores que querem obrigar os jovens a compor só com terças e oitavas. Isso não pode ser. Oitava não é melhor do que uma segunda aumentada. Ou é? A vanguarda fez a mesma coisa. Não sei se o que faço é bom ou mau. Gostos e cores não se discutem.
Para mim, bom é Chopin, Szymanovski, Messiaen, Webern, Shostakóvitch. Mas Darmstadt é seco, sem alma.
Folha - O sr. acredita na arte pela arte?
Górecki - Isso não existe. Música é música, uma arte abstrata. É como uma pintura. Tem que possuir um sentido, uma lógica interna. O pintor mostra alguma coisa para quem está olhando. Música também. Mas o que é música? Uma sonata de Mozart? O que significa uma mazurca. Não sei qual a finalidade da música. Isso não interessa. É o mesmo que querer saber por que comemos.
Folha - O sr. é o primeiro compositor contemporâneo a ter "desencalhado" em relação ao público. O sr. acha que o artista experimental deve atingir o público nests fim-de-século?
Górecki - Quem escreve música não pode jamais pensar na massa. Até ela precisa conhecer música para entendê-la adequadamente. Eu não espero ser entendido por todo mundo. Poucos compreenderam Bach em seu tempo. Se o público entendesse minha música, eu iria criar ovelhas. Nunca irei escrever música para a massa.
Folha - Por que musica é tão difícil?
Górecki - É uma abstração. Se eu pego esta xícara e mostro, todo mundo entende. Mas se começo a batucar nela, 99% não entende nada. Não adianta uma pessoa qualquer querer ler um livro de Proust, Thomas Mann ou poemas de Shakespeare. Ela não vai ter acesso à informação.
Arte não pode ser medida em volume de vendas. Esse tipo de coisa não tem nada a ver comigo. Quantos podem ouvir de verdade a obra de Messiaen?
Folha - Como o sr. encara o fato de sua música estar sendo usada como terapia pela massa?
Górecki - Se alguém quiser usar minha música dessa maneira e isso lhe fizer bem, não me importo. Hoje é Górecki. Amanhã pode ser y.

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