São Paulo, segunda-feira, 18 de julho de 1994
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Divisor de águas?

FLORESTAN FERNANDES

"Hoje o povo fala a linguagem da ação"
(N. Mandela)

As eleições atuais possuem um significado que transcende o convencional. Elas contêm uma carga política que não atingiram, sequer, as que se seguiram à campanha das "Diretas Já". Os vários pleitos que se sucederam à proclamação da República ficaram confinados a um círculo do qual se poderia afirmar que o circo mudou, contudo permaneceram os personagens –com nomes e aparências trocados. Eles deram-se conta do que se passava. Mas ficaram firmes em suas posições de arautos da senha básica: ordem e progresso! Duas coisas ao alcance de suas mãos. A ordem, graças à repressão e à opressão; o progresso, através da associação com as nações capitalistas centrais no esbulho do povo.
As lutas políticas dentro das elites não dissolveram essa dualidade maçônico-católica, pois público e privado corriam de mãos juntas e ninguém tinha razões profundas para despedaçar a realidade encoberta pela convivência dos contrários. As contradições que provinham do Império se resolviam por meio da consagrada "conciliação das elites". O povo sofria e, por vezes, parecia prestes a explodir. Não contava, porém, com os transtornos de "conflitos insolúveis pelo alto". Controlado pela violência oficial e particular, criava manifestações que apenas turvavam as águas podres da República oligárquica.
A década de 20 parecia oferecer o ponto de partida de um cenário inquieto, reformista e de entrechoque no mundo burguês e pequeno-burguês. Tal panorama treme em 1930. Mas logo se recompõem as tensões pelo alto, sem afetar a continuidade da praga intrínseca à ordem e progresso. A crise do poder oligárquico não merece essa qualificação. Estratos descontentes subiram ao poder e ignoraram suas promessas.
Na esfera política, os manda-chuvas aprenderam a tratar os conflitos intestinos com maior flexibilidade e eficácia. A ditadura de classe dissimulada cedeu à hipocrisia –destinada ao exterior– e soltou os ferrolhos que cerrassem as portas à ditadura de classe escancarada. Getúlio Vargas e o Estado Novo são os marcos de referência dessa alteração. A oligarquia tradicional compôs-se com a oligarquia em ascensão. Ambas aprenderam que seria melhor resguardar o poder que atiçar forças sociais novas, ansiosas por implantar suas concepções de ordem e progresso.
A ditadura militar conduziu o processo de acomodação por métodos coercitivos modernos. Deixou que as tensões se acumulassem e acreditou na perenidade do seu dogma geopolítico: "Transição lenta, gradual e segura"! Uma tolice. Embora os governos que a sucederam consentissem em adaptar-se ao controle militar latente, a sociedade como um todo desatou as contradições, naturalmente agravadas. Por isso, teremos um divisor de águas pacífico, por via eleitoral? Ou a rebelião crescente acabará reduzindo a entulho um passado infligido como eterno?

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