São Paulo, segunda-feira, 18 de julho de 1994
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Brasil medieval

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Erramos: 19/07/94

O sexto parágrafo deste artigo saiu com a terceira frase truncada, o trecho correto é: "Agora, preço legítimo é preço de mercado, é o preço que é resultado da livre concorrência, é o preço que surge dos embates entre a oferta e a procura. Preço ilegítimo (ou, se quiserem, injusto, mas agora com uma acepção claríssima, precisa) é o preço praticado por uma empresa monopolista, ou por um conjunto de empresas oligopolístas que, de alguma forma, conspiram entre si, fazem acordos para evitar a concorrência". Brasil medieval
O Brasil é sempre um mistério a ser decifrado. Podemos pensá-lo de muitas maneiras. Como um país capitalista, sem dúvida. Mas que capitalismo? Capitalismo mercantil, como queria Caio Prado; capitalismo industrial, como foi o grande objetivo de toda uma geração; capitalismo autoritário, como vimos tristemente durante o regime militar; capitalismo selvagem, como estamos cansados de ver todos os dias; capitalismo burocrático, como são até um certo ponto todos os capitalismos contemporâneos; nunca, porém um capitalismo moderno, competitivo e social-democrático, como seria minimamente desejável.
Poderíamos, entretanto, nos consolar dizendo: pelo menos temos capitalismo, já não estamos mais nem no tempo do escravismo, nem do feudalismo medieval. Ledo engano. Em certos momentos o Brasil continua rigorosamente medieval, como o foi quando o Congresso aprovou a Lei Antitruste, à base da qual três empresários ligados aos supermercados Makro acabam de ter, na última sexta-feira, sua prisão preventiva decretada: Alfredo Burghi e Leo Cunha de Carvalho, da própria Makro, e André e Jorge De Botton, diretores da Mesbla, que é acionista minoritária da Makro. Motivo? Aquela empresa teria praticado "preços abusivos" ou tê-los-ia aumentado "sem justa causa" em sua loja de Brasília.
Não vou fazer aqui a discussão jurídica do problema. Provavelmente os promotores e o juiz envolvidos estejam aplicando a letra da lei. E até mesmo o seu espírito! Mas é aí que está a gravidade do problema. Porque assim fica claro o absurdo da lei, seu caráter retrógrado, feudal, que absolutamente nada tem a ver com o mercado e um capitalismo moderno e competitivo que uma lei antitruste deveria proteger.
Quando a lei foi aprovada de afogadilho no Congresso houve protestos dos empresários e de juristas. Protestos especialmente contra o caráter draconiano da lei, contra sua excessiva severidade. Mas este é um problema sempre relativo. O que é draconiano para uns não é para outros. E, de qualquer forma, existe uma justa indignação contra as práticas oligopolistas existentes no Brasil, que acaba levando a reações talvez excessivas. Ninguém, entretanto, percebeu que, além de draconiana, a lei, que deveria defender o capitalismo contra os trustes ou oligopólios, na verdade é uma lei intrinsecamente anticapitalista, porque é uma lei que não está preocupada em defender o mercado competitivo, mas em incriminar o "preço injusto".
Ora, no capitalismo não faz sentido a idéia de preço justo. Ou, se faz sentido, o faz em uma acepção muito precisa. O que existe é preço competitivo, de mercado, e preço monopolista (ou oligopolista), contra o mercado. Preço justo é um conceito medieval, que os doutores da Igreja desenvolveram para criticar os abusos praticados então no regime feudal, quando os mercados eram por definição pouco desenvolvidos, e as práticas nonopolistas dos mercadores, uma norma. Mas já então os problemas do conceito eram imensos. Como definir o preço justo? Como distingui-lo do injusto, do abusivo? Não havia qualquer critério seguro.
A partir de Adam Smith, quando o capitalismo industrial se consolida, surge esse critério. Um critério tão claro, tão forte, que a própria idéia de preço justo perde importância. Agora preço legítimo é o preço de mercado, é o preço que é resultado da livre-concorrência, é o preço praticado por uma empresa monopolista, ou por um conjunto de empresas oligopolistas que, de alguma forma, conspiram entre si, fazem acordos para evitar a concorrência.
Nos Estados Unidos, onde existe uma longa e sólida tradição de legislação antitruste, não há dúvida nenhuma sobre o que se trata de combater: não é o preço injusto, o preço abusivo, mas a sua causa: as práticas oligopolistas. No Brasil, entretanto, continuamos em pleno feudalismo, como a prisão preventiva dos empresários demonstra. Em um grande número de artigos a Lei Antitruste fala de "preços injustos" ou de "preços abusivos", sem referi-los às práticas monopolistas. Na petição a que tive acesso porque sou amigo pessoal de Alfredo Burghi, de quem fui professor, pedindo a prisão preventiva dos empresários, assinada pelos promotores da Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos do Consumidor de Brasília, há diversas referências a "preços abusivos" e a "preços injustos", mas nenhuma referência a práticas monopolistas. Há referência a grandes aumentos de preços em URV, que puderam ser constatados em alguns artigos comparando-se notas fiscais da Makro de maio e junho deste ano –aumentos que de fato ocorreram, embora, comparando-se o total das mercadorias presentes nas duas notas fiscais o aumento fosse mínimo–, mas nenhuma afirmação de que a Makro praticou esses preços devido a seu poder de monopólio sobre o mercado de Brasília.
Não há essa referência pelo simples fato de que não pode haver. Porque a atividade de supermercados no Brasil, como em qualquer parte do mundo onde o mercado esteja minimamente desenvolvido, é uma atividade altamente competitiva. Sendo muitas as empresas e imenso o número de mercadorias vendidas, não existe a menor possibilidade de acordos de preços, ou seja, de práticas oligopolistas. Se os preços variaram em URVs –ou seja, em termos reais– isto aconteceu em função seja de aumentos dos fornecedores, seja de aumentos praticados pela própria loja, mas estes sempre dentro do mercado, em função da concorrência e não como uma forma de evitá-la. A Makro teria praticado um crime se houvesse participado de conspiração de preços, jamais porque variou em termos reais seus preços tanto para cima quanto para baixo, em função de práticas comerciais competitivas legítimas.
Em sua petição os promotores se posicionam como inimigos da inflação e defensores do Plano Real. Todos temos horror à inflação, e ninguém apoiou mais o Plano Real do que eu. Tenho dito com insistência, muito antes de o plano transformar-se em um êxito, que este era o melhor plano de estabilização que o Brasil jamais teve. Na verdade, é uma extraordinária prova de inteligência e criatividade de seus autores. Ora, esses notáveis economistas adotaram no plano uma filosofia de mercado que está em radical oposição ao frenesi autoritário e medieval que se nota em certos setores de Brasília e da imprensa, que pretendem garantir o êxito do plano através da polícia e não do respeito à própria lógica de mercado do plano. O mercado não estava podendo funcionar devido à inércia inflacionária, à indexação informal da economia, mas agora voltou a funcionar graças à URV e à reforma monetária.
É claro que o mercado é um a instituição, e, como tal, precisa ser regulado e protegido pelo Estado. Cabe ao Estado garantir os direitos de propriedade e a validade dos contratos, sem o que é impossível ao mercado funcionar. Cabe também ao Estado coibir sob todas as formas as práticas oligopolistas, para isto sendo necessária uma legislação antitruste e uma burocracia que garanta seu cumprimento. E cabe ao Estado suprir as falhas do mercado, principalmente na área social. Não cabe, entretanto, ao Estado transformar-se em árbitro da "justiça" dos preços. Desta forma voltamos ao pior autoritarismo, e regredimos à Idade Média, bem no momento em que o grande desafio do Brasil é entrar no Século 21 construindo um capitalismo moderno, competitivo, dinâmico, socialmente mais justo.

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