São Paulo, quinta-feira, 21 de julho de 1994
Próximo Texto | Índice

Americanas fogem do rótulo das minorias

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

Duas escritoras desconhecidas dos leitores brasileiros chegam às livrarias este fim de mês. Além de serem mulheres, têm em comum o fato de virem de países que foram colônias inglesas e de terem sido lançadas nos Estados Unidos.
As escritoras, a indiana Gita Mehta e Jamaica Kincaid, de Antígua, dizem que detestam a idéia de serem vistas como representantes de minorias. Na ótica americana do "politicamente correto", as duas "mulheres e não-brancas" seriam um prato cheio.
Mas elas também fazem parte de uma outra minoria: um grupo restrito da literatura americana contemporânea que não produz "thrillers"."O Monge Endinheirado, A Mulher do Bandido e Outras Histórias de um Rio Indiano" (Companhia das Letras, 328 págs., R$ 17,00), de Gita Mehta, conta, em narrativa de mil e uma noites, histórias que revelam mitos e lendas da Índia.
"Lucy" (Objetiva, 89 págs., R$ 7,80) é um romance autobiográfico, em que Jamaica Kincaid conta como chegou aos Estados Unidos para trabalhar como empregada para um casal de vida aparentemente cor-de-rosa.
Num terreno mais mundano, as duas também dividem outro cenário comum –o do mercado editorial americano. Gita é casada com Sonny Mehta, presidente da Knopf, uma das principais e mais prestigiosas editoras dos EUA. Jamaica Kincaid escreve na "The New Yorker" e é casada com Allen Shawn, filho de um ex-diretor da revista.
"Lucy" é o quarto livro de Kincaid, uma escritora já consagrada, que acredita que a América ainda é um país de oportunidades. "Quando eu era adolescente e vim para cá, conheci algumas pessoas que depois conheceria de novo, já como escritora. Eu entrei no mundo que eles ocupavam quando eu era uma criada. Mas ninguém vai me dizer isso. Nos EUA, ninguém se importa com nada se você tiver sucesso."
Kincaid falou à Folha por telefone de sua casa em Vermont, perto de Nova York.

Folha - O quanto seu livro, "Lucy", é autobiográfico?
Jamaica Kincaid - É completamente autobiográfico.
Folha - Como Lucy, a personagem, você renunciou a seu passado e às suas origens?
Kincaid - Não. Eu tenho dois filhos e não posso fazer isso.
Folha - E por que ela precisou negar sua mãe e seu país?
Kincaid - Acho que é um tipo de desespero. Quando você está tentando se inventar, tem que jogar fora o bebê e a bacia e começar do nada.
Folha - Lucy vê os homens de uma maneira negativa. Essa visão também é sua?
Kincaid - Bom, deixa eu primeiro explicar as diferenças entre eu e a personagem. Lucy tem 19 anos e eu, 45. Estou casada desde 1979 com a mesma pessoa e nós temos dois filhos. Então eu não posso dizer que a visão de uma pessoa de 19 anos é representativa da minha visão das coisas hoje.
As conexões entre a personagem e meu caráter são muito profundas, entretanto há uma ou duas gerações entre nós.
Folha - Você acha que seria possível hoje para uma imigrante como Lucy fazer uma vida nos EUA, como você fez a sua?
Kincaid - Acho que seria ainda mais possível. Quando eu vim para os EUA havia muito mais separação racial e muito menos liberdade para alguém de minha raça. A América é um lugar cada dia mais aberto.
Folha - Para os imigrantes? Eles não podem entrar...
Kincaid - A América é um país de imigrantes. Eles nunca deixaram as pessoas entrar. Sempre houve restrições. Mas aqueles que entram... Basta olhar em qualquer cidade americana, as pessoas que estão lá, legal ou ilegalmente, fazem suas vidas.
Os imigrantes só são mal-vistos assim que chegam. É um país muito complicado e interessante, e acho que é o único lugar no mundo onde não é uma boa idéia se dar mal com as pessoas.
Folha - Você se considera uma "escritora" ou uma "mulher negra escritora"?
Kincaid - Bem, que eu sou uma mulher negra é evidente para qualquer um. Que eu sou uma escritora, não é a primeira coisa que se perceba sobre mim. Mas não me vejo como escritora-mulher ou como escritora-negra.
Espero que as pessoas me leiam porque sou boa, ou não me leiam porque acham que sou ruim. Mas que não me leiam porque sou mulher e negra. Prefiro ser somente escritora. No trabalho, sou escritora. No mundo, sou mulher e negra.
Folha - A maior parte do que se produz na literatura americana hoje são "thrillers". Como você se sente entre Michael Crichtons e John Grishans?
Kincaid - Michael Crichton não é um escritor. Ele é um "mala"! Não é literatura, é divertimento. A maioria das pessoas que conheço e que são escritores não escrevem assim e não lêem esses livros. Não lemos Michael Crichton, não lemos John Grishan. Às vezes a gente lê John Updike, mas ele não é dessa geração.
Folha - Você é tão raivosa quanto Lucy?
Kincaid - Não posso mais ser assim. Agora tenho dois filhos.
Folha - Mas você era?
Kincaid - Acho que sim. É uma arma muito útil e é muito bom para uma mulher ser assim. As pessoas não gostam das mulheres muito bravas, mas é uma arma potente para te tirar de um buraco.

Próximo Texto: Mehta diz que best seller exige talento
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.