São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 1994
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Copa trouxe a estação 'verde-e-amarelo'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Vinicius de Moraes referiu-se, num poema famoso, às cores "tão feias" da bandeira nacional. Mas uma das coisas boas desta Copa do Mundo, em meio a um clima que parece ao mesmo tempo doentio e terapêutico, foi ver como a cidade ficou mais bonita e alegre com o verde e amarelo pintando por toda parte.
Foi uma espécie de eclosão, de primavera tal como a sente quem vive nos países do Hemisfério Norte: simultânea, surpreendente e gradual. Na véspera, você passa pela rua e não vê nada. Um dia depois, já há três, quatro bandeiras penduradas.
Fitas, faixas, roupas, brotaram da noite para o dia, como se de cada lado, numa conspiração feliz, num acordo secreto, se respondessem umas às outras. E você não sabe mais para onde dirigir o seu olhar. No começo, o surgimento de uma bandeira isolada chamava a atenção.
Tudo se perde no mar das mesmas cores, e não há mais, de nossa parte, o ato de "reparar" nesta ou naquela nova floração, não há mais o "olha ali" de quem nota um ou outro rebento verde entre as pedras e o concreto armado. Não há mais a curiosidade do botanista, do colecionador de insetos, do observador dos fatos sociais. A vista se confunde, a atenção se perde.
Pois não há nada mais oposto à atenção (atitude que requer silêncio, espreita, desejo de novidade) do que a festa coletiva, onde o espírito tende a ceder ao corpo, e cada corpo se junta aos demais.
Nesse sentido, a comparação que fiz acima, entre a primavera e o verde-e-amarelo que tomou conta da cidade, não é tão forçada ou "poética" assim. Embora a decoração das ruas, dos carros, dos prédios, tenha sido feita por mãos humanas, ela surge ao espectador como um fenômeno natural, como um acontecimento da ordem da natureza física. Tal qual a mudança das estações ou o aparecimento da vida; o surgimento das cores na cidade é um fato anônimo, ordenado e caótico ao mesmo tempo.
Casual nos pormenores, é reconhecível no conjunto. Não podemos prever em que janela aparecerá uma bandeira, nem em que galho exatamente vai surgir um novo broto, nem quando; mas sabemos que, um belo dia, tudo estará coberto de cor.
Trata-se, se se pode dizer assim, de uma confusão coerente, de um fenômeno tumultuário e inteligível.
Daí, talvez, o fascínio que exercem os grandes eventos de massa, a beleza pacífica ou terrível que nasce das praças públicas, das catástrofes, das celebrações. São momentos em que os atos humanos adquirem, por empréstimo, o movimento e a força da natureza.
Daí, também, os perigos do nacionalismo, que toma, num misto de pânico e exaltação, aquilo que é obra da história (uma língua, os costumes) como se fosse obra da natureza, coisa indiscutível e eterna, inscrita no sangue e na carne de cada um.
Certamente me assustam os exageros de paixão nacional, ainda que pacíficos, alegres, dirigidos para um objetivo distante e inócuo. Não sei se o verde-e-amarelo é uma combinação de cores feia ou bonita. Do mesmo modo, não sei avaliar a qualidade do Hino Nacional. E não posso, ninguém pode responder por que, afinal, torcemos pelo Brasil –apenas com a frase, irracional, mas verdadeira; "Porque é o Brasil".
Identificação com os mais próximos, solidariedade, certeza de saber que o vizinho está vendo o jogo como você: sentimentos eróticos, disse Freud na "Psicologia das Massas".
Uma observação suplementar. O americano que torce pelo time de basquete de sua cidade, o Chicago Bulls, por exemplo, é certamente aquilo que, no velho jargão de esquerda, se chamaria de um "alienado". Deixou-se fascinar pelo esporte, esse ópio do povo.
Mas o brasileiro pobre, analfabeto, que nunca torceu pelo Chicago Bulls nem sabe o que é Harvard, usa cada vez mais esses bonés e camisetas. É uma hiperalienação. Vê-lo com a camisa da seleção brasileira já é alguma coisa.
Somos pouquíssimos nacionalistas no cotidiano. Qualquer coisa importada é melhor, na nossa cabeça, do que as que temos. Somos os primeiros a falar mal de nosso país. Quando vestimos as cores da bandeira brasileira, mal sabendo aliás a letra do Hino Nacional, estamos tão prontos para sofrer quanto para triunfar. No fundo, os dois sentimentos são bons. Não nos levam a nada, exceto a nós mesmos.

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