São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A mãe-de-santo de Juiz de Fora

JOSÉ SARNEY

Sou daqueles que são contra essa tentativa desesperada de transformar os Estados Unidos no país do futebol. No dia em que assim for, adeus brilho da bola nos países pobres.
O futebol é o esporte mais popular do mundo porque é o mais democrático, o mais igualitário. Para que ele aconteça, não há necessidade de uma parafernália que demande dinheiro e treinamento. Basta uma bola, que não sendo de couro é de borracha, não tendo de borracha, vai mesmo a bola de meia, a pelada que acontece em todo lugar, na rua, no largo da igreja, no fundo do quintal, no chão vazio.
Para jogar-se golfe, tem de existir o instrumental que necessita de um ajudante para carregar; vôlei, a rede; beisebol, o taco; futebol americano, roupa de astronauta e por aí vai. O futebol não. É o esporte do rico e do pobre, exigindo boa canela, habilidade. É divertimento dos meninos mais pobres, que têm o dom de criar um forte sentimento de solidariedade. E muitas vezes substitui o vazio da desesperança pela esperança de um gol.
O futebol, originalmente inglês, abrasileirou-se. Assim como a língua portuguesa, que no Brasil encontrou um continente para ser falada, o futebol encontrou espaço para ser prático. E ele se parece com o nosso país: é cordial, leva à controvérsia e à união.
No momento em que a cultura erudita se destroçou, confrontada com os modelos importados e enlatados, a cultura popular, de massa, sobrevive, forte nos seus valores: é o Carnaval, é o sincretismo religioso, são os folguedos populares, é o futebol, que se cristalizam na galera.
O Brasil começa a sair do seu inferno astral. O mundo mudou, as ideologias ruíram e o país permaneceu durante muito tempo na cultura da crise, esta em que se estimula, se constrói, se bloqueiam as soluções e destrói-se a auto-estima.
Com a possibilidade de uma vitória das forças de esquerda, estas aderiram à governabilidade. Romperam seu casamento com a democracia proletária e se deixaram seduzir pela democracia burguesa, que também tem seus encantos. Neste vácuo, chegaram o Bisol, o real e o tetra.
Leio nas pesquisas que mais de 50% da população está numa boa e feliz com a vida. O Brasil atravessou seu desfiladeiro e vive um bom momento.
Quem levou Clinton e Al Gore a baterem palmas ao Brasil não foi a nossa política externa sobre o Haiti, foi Parreira, Taffarel, Romário, o dr. Lídio, que cuidou da saúde das crianças, e toda a nossa rapaziada da seleção.
É bonito ver o Brasil unido, vestido de verde-e-amarelo, com "um só coração", como dizia o meu sempre lembrado e grande amigo Miguel Gustavo.
Acabou-se a era dos impeachments, das CPIs, do nosso inferno astral, cujo final foi aquela trágica manhã da curva Tamborello, em Imola. É hora do tetra. E com razão o presidente Itamar está rindo sozinho. Afinal, com seu jeito mineiro, ele atravessou os terreiros baianos com uma mãe-de-santo de Juiz de Fora.
PS – Ponho a minha opinião na bagagem dos tetracampeões. Eles traziam uma coisa que não paga taxa aduaneira: a auto-estima nacional que tinha saído do Brasil.

Texto Anterior: Deuses sonegadores
Próximo Texto: BAGAGEM DA SELEÇÃO; APOIO AO REAL; REFRÃO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.