São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 1994
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Fisco, igualdade e o dr. Osiris

GERALDO ATALIBA; CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO

Parabéns, dr. Osiris: há pessoas que contribuem para o país até ao deixar o cargo que exercem
GERALDO ATALIBA e CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO
"Todos são iguais perante a lei." É princípio básico e fundamental, porque tudo o mais –nas instituições– serve para realizar esse valor supremo.
Sem a igualdade, não há necessidade de separação de poderes; não há vantagem no desenvolvimento; não há interesse no progresso: é que, sem igualdade, tudo fica para alguns.
A história da humanidade é a história da luta contra os privilégios, as exceções, os favorecimentos, a prepotência, a arrogância dos privilegiados.
A legalidade é instrumento da igualdade. Por isso a lei deve ser "geral e abstrata". Geral, porque obriga a todos; abstrata porque não pode considerar casos singulares, mas só gêneros de fatos.
O princípio da legalidade é o esteio de todas as grandes civilizações modernas. A sabedoria inglesa engendrou o "rule of law": governo das leis e não dos homens.
Sem legalidade, prevalecerão os mais fortes, economicamente, fisicamente, psicologicamente, socialmente. E os fracos são oprimidos, explorados, espoliados. A lei é a única defesa das minorias. Os poderosos (do dinheiro, da fama, do prestígio, da mídia, da força física) não precisam de lei. Seu poder advém de suas posses.
Um país só pode ser civilizado (resultado de longo, árduo, penoso, paulatino processo) se fundar-se na legalidade, único modo racional, suave, justo e garantido de assegurar-se a igualdade.
Noticiaram os jornais que foi dispensado um tratamento de favor, de privilégio, na alfândega, ao sr. Ricardo Teixeira, a um tio deste, aos srs. Lidio de Toledo, ao sr. Carlos Parreira, ao sr. Mário Zagalo, aos jogadores da seleção brasileira de futebol, em suma, aos integrantes da delegação que disputou o campeonato mundial, quando regressaram ao país.
Se foram eximidos do padrão normal de inspeção e de recolhimento de tributos acaso devidos, o fato é grave. É mais que grave. É gravíssimo.
As homenagens que se tributem aos futebolistas pelo tetracampeonato são uma coisa. Outra coisa é outorgar, contra a lei e de modo público, tanto a eles como a outras pessoas que integravam a delegação brasileira, um favorecimento em face de deveres a que estão sujeitos todos os brasileiros.
Todos são iguais perante a lei (art. 5º da Constituição Federal) e, consequentemente, perante a administração, a qual está obrigada ao dever da "impessoalidade" (art. 37 da CF). Violada esta igualdade, esta impessoalidade, as demais pessoas poderão pretender que lhes seja dispensado o mesmo tratamento. E se surgirem interessados impetrando mandado de segurança preventivo para obterem idêntico tratamento quando regressarem ao país?
Certamente não seria a solução correta, mas qualquer cidadão poderá mover ação popular para anular o comportamento lesivo ao patrimônio público, caso em que, julgada procedente a ação, o que seria a consequência óbvia, a autoridade responsável e os beneficiários responderão com os próprios bens pelo dano causado.
Quem teria autorizado tão ostensiva violação ao direito? Seja quem for, está em maus lençóis, pois a lei nº 8.429, de 2/06/92, prevê sanções severíssimas para o agente público que pratique ato de improbidade administrativa.
Ora, nos termos desta lei (art. 10), considera-se ato de improbidade administrativa "conceder benefício administrativo ou fiscal sem a observância das formalidades legais ou regulamentares aplicáveis à espécie" e reputa-se agente público todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, mandato, cargo, emprego ou função para a qual tenha sido eleito, nomeado, designado ou contratado.
As sanções previstas para o caso são as de suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, perda da função pública, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano, ressarcimento integral dele e proibição, pelo prazo de cinco anos, de contratar com o Poder Público e dele receber benefícios fiscais ou creditícios, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário (art. 12, II).
E, note-se, qualquer pessoa poderá representar à autoridade administrativa para que seja instaurada investigação para apuração do fato. A comissão processante terá de dar ciência disso ao Ministério Público e ao Tribunal de Contas.
Acresça-se que se a autoridade administrativa rejeitar a representação –e terá de fazê-lo em despacho fundamentado– isto não impede a representação ao Ministério Público.
Em todo esse lamentável episódio houve algo de consolador. O secretário da Receita Federal, dr. Osiris de Azevedo Lopes Filho, conforme resultou do noticiário de rádio e televisão, por discordar do sucedido, pediu exoneração de seu cargo.
Já agora, além da velhinha de Taubaté, podem os brasileiros acreditar que há agentes públicos ocupantes de altos cargos que não têm por tais cargos um apego maior daquele que têm pelos próprios deveres e convicções.
Professor de direito, ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, mestre em direito tributário, servidor público exemplar, o dr. Osiris haveria de ter ficado chocado com o que ocorreu.
De resto, que autoridade teria, depois disto, para, em nome do governo, exigir, como têm feito, que todos, empresários, profissionais liberais e assalariados cumpram com suas obrigações perante o fisco?
Parabéns dr. Osiris. Sua atitude contribuirá para fazer do Brasil um país civilizado. É pelo exemplo que se fortalecem as instituições.
O grande problema nacional não é econômico. É de cultura. Nossos governantes precisam ter a cultura da igualdade e de legalidade. Seu exemplo há de frutificar.
Há pessoas que contribuem para o país até quando deixam os cargos que exerceram. Quem entrou de pé e erecto exerceu as delicadas responsabilidades de secretário da Receita Federal, saindo de pé e com dignidade fortalece o serviço público, edifica os servidores e fortalece as instituições.

GERALDO ATALIBA, 58, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO, 57, advogado, é professor titular da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

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