São Paulo, sexta-feira, 22 de julho de 1994
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A barbárie anti-semita

FABIO FELDMANN

Penso nas crianças que estudavam no sétimo andar do edifício destruído pelo atentado terrorista em Buenos Aires e lembro das crianças do filme de Spielberg –"A Lista de Schindler"– sendo transportadas para os crematórios, cantando.
Entre o ódio racial que vitimou milhões nas câmaras de gás e a violência da bomba que matou dezenas, hoje existe um elo de ligação nada casual: as vítimas foram assassinadas simplesmente por serem judeus; e mais, por ações premeditadas e planejadas friamente...
O atentado de Buenos Aires confirma que a barbárie anti-semita continua solta planeta afora, mesmo depois de decorrido meio século do holocausto nazista, a maior máquina de morte criada na história da humanidade.
Certamente, alguns analistas mal informados irão procurar reduzir esse atentado à problemática de paz no Oriente Médio, o que ao nosso ver equivocadamente dissimula o caráter anti-semita deste episódio.
No caso da Argentina, trata-se de uma abjeta reincidência, visto que há pouco mais de dois anos outra explosão destruiu a embaixada israelense em Buenos Aires, matando mais de 28 pessoas, sem que os responsáveis fossem identificados.
Tanto num caso quanto noutro, o que não se deve esquecer é que o terrorismo anti-semita pode realizar suas ações em qualquer instituição judaica do mundo, inclusive no Brasil, fazendo da coletividade israelita um refém permanente de terroristas que não hesitam em ceifar vidas humanas em prol de uma racionalidade genocida.
Se a ascensão do nazismo na Alemanha na década de 20 foi favorecida por um período em que a democracia naquele país estava fragilizada por um ambiente de inflação sem controle e em que a auto-estima do povo alemão se encontrava severamente golpeada, a crise pela qual passam certos países, hoje, não pode novamente justificar nenhuma ação contra estrangeiros, judeus, negros, ciganos, homossexuais e outros grupos minoritários.
Aquele álibi social para sentimentos racistas, de qualquer ordem, não pode mais encontrar eco em uma humanidade que já conheceu os horrores de genocídios insanos, devendo ser severamente reprimido pela enérgica ação do Estado e repudiado pelo conjunto dos seres humanos.
Lamentavelmente, no entanto, o que se vê é uma nova onda de anti-semitismo em todo o mundo, especialmente nos países do Leste Europeu. Informações da União Interparlamentar Contra o Anti-Semitismo, que congrega parlamentares de todo o mundo, dão notícia de depredações em cemitérios israelitas e a possibilidade do retorno dos "progroms" (ações de agressão contra comunidades israelitas na Europa Central durante séculos).
Na própria Alemanha ressurgiram grupos de extrema direita voltados à perseguição de judeus e estrangeiros conforme lemos na cobertura da imprensa internacional.
No Brasil, embora de modo incipiente, já tivemos a importação do ideário anti-semita com o movimento integralista, sem que a moda pegasse, o que não nos torna imunes a uma nova investida dos defensores de uma hegemonia racial e cultural tacanhas.
Mais recentemente, no sul do país surgem iniciativas revisionistas que negam a realidade genocida do holocausto, promovendo cinicamente o que chamam de "holocausto alemão".
Embora ridícula, mentirosa e desprovida de qualquer apego aos fatos, esses revisionistas têm promovido a publicação de livros e distribuição de panfletos, chegando ao atrevimento de remeter a pessoas da coletividade israelita cartas com suásticas.
Até o momento, assistimos a uma certa displicência de nossas autoridades com tais ações, acreditando se tratar de episódios isolados, sem maior gravidade. Será que é isso mesmo? Não seria o caso de energicamente cumprir a legislação em vigor que proíbe tais ações e investigar quem estaria por trás de tais publicações?
Não podemos esquecer que o programa Fantástico de 21/02/94 divulgou para quem quisesse ver e ouvir a existência de uma organização norte-americana que financia atividades racistas contra negros e judeus no Brasil, sem que até agora nada tenha sido feito para apurar os fatos e punir os responsáveis.
O holocausto com suas milhões de vítimas, burocrática e industrialmente assassinadas, já deu mostras de que não se pode duvidar da força vital da serpente.
A queda do Muro de Berlim parecia o início de uma nova era. A realidade dos nacionalismos, xenofobismos, anti-semitismos e "apartheids" sociais está mostrando que ainda nos encontramos muito distantes de qualquer utopia de convivência igualitária em contextos societários democráticos.
O atentado da Argentina exige, portanto, além da identificação dos responsáveis e a sua condenação exemplar como genocidas, a expressão mundial de solidariedade às vítimas, entre as quais incluímos certamente a coletividade israelita do mundo inteiro e sociedade argentina.
Como dizia Brecht, o ventre que gerou a besta continua fértil.

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