São Paulo, sábado, 23 de julho de 1994
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Thriller que veio do gelo aquece literatura

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

O maior fenômeno da literatura dinamarquesa desde Isak Dinesen (ou Karen Blixen) é um ex-dançarino, ex-alpinista, ex-esgrimista, ex-ator e ex-marinheiro de 37 anos chamado Peter Hoeg.
O romance que o tornou conhecido internacionalmente, "Senhorita Smilla e o Sentido da Neve", chega agora às livrarias brasileiras, pela Companhia das Letras.
"Senhorita Smilla", de 1993, foi o terceiro livro publicado por Hoeg e o primeiro a sair das fronteiras da Dinamarca: traduzido em 17 idiomas, obteve enorme sucesso de crítica e público (nos EUA já vendeu mais de 50 mil exemplares, marca excelente para uma obra estrangeira).
É um thriller político-cultural (leia crítica abaixo) e será filmado pelo diretor dinamarquês Bille August, o mesmo de "Pelle, o Conquistador", "As Melhores Intenções" e "A Casa dos Espíritos".
Grande parte do encanto do romance vem da caracterização de sua protagonista, a obstinada Smilla Jaspersen, filha de uma caçadora groenlandesa com um renomado médico de Copenhague.
Essa "outsider" da sociedade dinamarquesa se mete numa complicada intriga de proporções internacionais ao investigar a morte de um garoto esquimó de sua vizinhança em Copenhage.
Viés antropológico
Ao longo do romance desfilam as contradições sociais da Dinamarca, em especial a discriminação dos imigrantes pobres vindos da Groenlândia (território até hoje sob domínio dinamarquês, apesar da semi-autonomia conquistada em 1979).
A preocupação principal de Hoeg, contudo, parece ser de ordem cultural, no sentido antropológico da expressão. A curiosa e complicada relação dos esquimós com a sociedade européia permeia todo o romance.
Esse desejo de compreender o "outro", de identificar-se com o que é diverso do europeu, tem relação com a vida pessoal do autor.
Casado com uma dançarina do Quênia (África), Hoeg passa parte do ano na aldeia natal dela. "Uma das coisas que eu mais admiro fora da sociedade ocidental é a força das mulheres que vi no Terceiro e no Quarto Mundos", declarou ao "The New York Times", acrescentando: "De muitas maneiras, Smilla é tanto uma criação tropical quanto uma esquimó".
Escondido no Brasil
O sucesso internacional imprevisto assustou Peter Hoeg, um homem tão avesso ao mundanismo e às luzes da fama a ponto de não ter TV, nem carro, nem telefone.
Agora que seu quarto livro, as falsas memórias "Os Talvez Habilitados", começa a ser traduzido em outras línguas, ele resolveu se refugiar bem longe dos refletores e veio para o... Brasil.
Hoeg escondeu-se tão bem em algum canto do país que nem sua editora dinamarquesa (Bibi Petersen, da Munksgaard), nem seu editor brasileiro (Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras) conhecem seu paradeiro. Schwarcz tem esperança de que ele apareça a tempo de participar da próxima Bienal do Livro de São Paulo, que começa em 17 de agosto.
O sucesso internacional de "Senhorita Smilla" está motivando a tradução para diversas línguas dos dois livros anteriores de Hoeg.
O primeiro, "Sugestões do Século 20" (1988), é um panorama da vida dinamarquesa através da história de quatro famílias.
O segundo, "Contos da Noite" (1990), reúne nove narrativas ambientadas em 1929 e escritas num estilo que foi considerado uma paródia do de Isak Dinesen. Todos os personagens principais dessas histórias têm em comum o desejo e o empenho de mudar o mundo.
Falso orfanato
"De Maeske Egnede" ("Os Talvez Habilitados", segundo a tradução provisória de Heloisa Jahn), o quarto livro de Peter Hoeg, narra em primeira pessoa e em dois tempos alternados o drama de um menino chamado Peter que vive sendo transferido de internato em internato e sofrendo violências e estupros.
Lançado na Dinamarca no final do ano passado e recém-traduzido para o inglês com o título "The Test of Time" (O Teste do Tempo), "Os Talvez Habilitados" é um falso livro de memórias. A infância de Hoeg não teve nada a ver com a de seu protagonista-narrador, Peter.
Se em "Senhorita Smilla" o objetivo central de Hoeg era captar o conflito entre culturas e, sobretudo, entre natureza e cultura, em seu novo livro sua preocupação parece ser a de explorar as diferentes percepções do tempo. Não por acaso, a pergunta que abre o texto é: "O que é o tempo?"
"Há na escrita uma subestimada quantidade de técnica, de habilidade", declarou o escritor ao jornal "The European". "Estou num estado de aprendizado. Até agora, cada um de meus livros tem sido uma experiência."
A boa notícia, em suma, é esta: há vida, calor e inteligência na literatura que vem do norte gelado do planeta.

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