São Paulo, sábado, 23 de julho de 1994
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Romance combina suspense e erudição

JOSÉ GERALDO COUTO
DA REPORTAGEM LOCAL

"Senhorita Smilla e o Sentido da Neve" é um prodígio de equilíbrio entre qualidade literária e entretenimento. Faz lembrar, nesse aspecto, os romances de Graham Greene. Com o acréscimo de um componente característico de certa literatura internacional contemporânea: o recurso à pesquisa, à erudição, ao adensamento do texto com minúcias referentes a algum campo do conhecimento.
Em "Smilla", trata-se, aliás, de vários campos do conhecimento: a etnologia, a física, a biologia, as técnicas de navegação e, sobretudo, a "ciência da neve", se é que existe tal coisa.
O mais interessante, entretanto, é que as observações minuciosas a respeito de todas essas coisas integram-se perfeitamente ao texto do relato, sem prejudicar sua fluência e seu ritmo arrebatador.
A aventura de Smilla, uma enjeitada e solteirona filha de dinamarquês com groenlandesa, consiste em descobrir por que morreu um garotinho esquimó, seu amigo e vizinho. Ela não aceita a versão da polícia, de que ele estava brincando em cima do telhado e se espatifou acidentalmente na neve.
Narrada em primeira pessoa pela protagonista –e uma das proezas de Hoeg foi encontrar o tom exato dessa altiva voz feminina–, a investigação de Smilla segue um esquema semelhante ao do policial "noir" norte-americano, em que, segundo a definição de Ricardo Piglia, "o investigador se lança, cegamente, ao encontro dos fatos, se deixa levar pelos acontecimentos e sua investigação fatalmente produz novos crimes".
Acrescentem-se a isso a ambientação tipicamente "noir" de passagens do romance (becos escuros, ancoradouros envoltos em brumas, armazéns abandonados) e a ironia agressiva da protagonista.
A diferença entre Smilla e detetives como Sam Spade e Philip Marlowe está menos na profissão (ela é física) que na sua motivação (ela não quer dinheiro, quer justiça) e no seu caráter (ela é uma rebelde moral, não uma cínica).
Uma das astúcias narrativas mais notáveis de Peter Hoeg é o controle absoluto do ritmo, num curioso e original jogo de avanços e recuos. Em algumas passagens, por exemplo, a protagonista adianta-se na narração dos efeitos de um determinado encontro, e só depois recua e conta o encontro propriamente dito.
Há ainda, por vezes, um vertiginoso contraste entre o ritmo frenético dos acontecimentos e uma certa lentidão expositiva, construída à base de repetidos parênteses abertos na narração para a introdução de elucubrações eruditas, técnicas ou filosóficas da protagonista. Como nos romances de folhetim e nos policiais clássicos, dessas suspensões da ação provém, exatamente, o suspense.
Outra coisa surpreendente no livro é a amplidão do espectro de personagens, ambientes e situações apresentado. Do porão de um cargueiro a um sofisticado clube de golfe, de um cientista de primeira linha a um mecânico disléxico, tudo e todos recebem uma descrição precisa e convincente. Hoeg parece se colar camaleonicamente àquilo que quer dar a ver.
Uma última palavra sobre a tradução: embora seja impossível aqui, por desconhecimento do dinamarquês, avaliar sua fidelidade ao original, o texto em português, de Heloisa Jahn, tem uma fluência, uma elegância e um humor que só os tradutores que possuem talento literário conseguem preservar. É muito graças a esse trabalho quase anônimo que a leitura de "Senhorita Smilla" é um prazer da primeira à última linha.

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