São Paulo, sábado, 23 de julho de 1994
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Buenos Aires, Carandiru e Chiapas

JOSÉ ARBEX

Seria simples responder "não" a essa pergunta. Bastaria dizer que o terror em Buenos Aires foi praticado por algum grupúsculo, talvez árabe ou iraniano, e que nada tem a ver com a América Latina. É coisa "de estrangeiro". Assunto encerrado.
Mas o mero fato de o atentado ter provocado uma indagação sugere que as coisas talvez não sejam tão simples. Tanto é que essa questão não foi suscitada, ao menos com tal relevância, pela bomba que arrasou a embaixada de Israel em Buenos Aires, em março de 1992.
Algo mudou nos últimos dois anos. Algo que está "no ar" e que fede o suficiente para causar o mal-estar evidenciado pela pergunta.
Eis os fatos: a violência segregacionista na América Latina é cada vez mais explícita e praticada com muito maior amplitude do que sonham separatistas, skinheads e neonazistas que atuam na Europa.
Aqui, esses grupos se espelham no racismo de Estado, no preconceito erigido em autoridade e poder, no desprezo ao outro tão sistemático que brutaliza a sociedade, anula sua capacidade de indignação, banaliza o mal.
Exagero? O que dizer, então, do silêncio que relegou ao esquecimento o massacre dos centenas de indígenas praticado pelo exército em Chiapas, sul do México, em janeiro de 1994?
Ou da imunidade dos que chacinaram 111 pretos, quase-brancos e mulatos, em outubro de 1992, no Carandiru (São Paulo-Haiti)?
Ou da indiferença em face do extermínio dos povos indígenas da Amazônia Internacional e América Central, com a anuência e/ou participação cúmplice dos governos?
Em alguns dias, o mesmo silêncio absorverá o atentado de Buenos Aires. Pior: se hoje alguns setores exibem indignação, também é verdade que intervêm aí um processo psicossocial de natureza exclusivista.
A elite formadora de opinião é branca, e mesmo seus mais sinceros democratas identificam-se muito mais com o estereótipo do judeu branco, culto e rico do que com o negro ou índio anônimo e sem face.
Que ninguém se iluda –a morte do mais semelhante é sempre menos tolerável, e só por esta razão é que os cadáveres de Buenos Aires parecem gritar mais alto do que os de Carandiru ou Chiapas.
O jogo psicológico mobilizado pelo terror em Buenos Aires evoca uma forte imagem teatral –a abertura de "Hamlet".
É meia-noite em Elsinore (Dinamarca), e os sentinelas trocam a guarda do castelo real. Estranhamente, é Bernardo, o guarda que chega, e não Francisco, o que deixa seu posto, quem pede ao outro que se identifique. É que eles estão nervosos e confusos.
Pressentem, sem o saber, a chegada do fantasma do pai de Hamlet, cuja substância –ódio e vingança– envenena o ar, confunde, amedronta.
O fantasma fez sua aparição em Buenos Aires, e ameaça, como em "Hamlet", espalhar mais morte e mais destruição.

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