São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Uma cidade inteira em chamas

JOÃO MARCOS CARVALHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A densa neblina que encobria a Paulicéia às 2 horas da madrugada daquele sábado, 5 de julho, serviu de camuflagem natural ao capitão Joaquim Távora e ao tenente Eduardo Gomes que, a pé, saíram do sobrado da rua Vauthier em direção ao quartel do 4º BC, em Santana. Ali, deram início ao levante.
Entretanto, a sorte dos revoltosos mudaria rapidamente pela ação de um traidor. Inicialmente comprometido com os rebeldes, o tenente Humberto Cursino Villa Nova, comandante da guarda do Palácio dos Campos Elíseos, troca de lado e alerta seus superiores.
A essa altura, a luta se generalizava por toda a cidade. Paralelepípedos são arrancados para servirem de trincheira; combatia-se corpo-a-corpo em cada esquina e a população procurava proteger-se como podia.
O dia 6 amanheceu sem que os rebeldes tivessem concretizado seus planos. A situação se invertera dramaticamente: o fator surpresa havia falhado e a resistência, que praticamente não existia nas primeiras horas da sublevação, era rígida já na noite do dia 5.
No Rio de Janeiro, o general Eduardo Sócrates, comandante da 1ª RM, organizava as tropas legalistas para a resistência. Vindas de Santos, tropas da Marinha desembarcam na Moóca, trazendo canhões retirados de navios. Do interior, tropas leais da Força Pública (FP) vêm combater os rebeldes.
Posicionados no alto do Araçá, as baterias revolucionárias, comandadas por Eduardo Gomes, abrem fogo contra o QG da FP, na Tiradentes, incendiando completamente o prédio. Granadas explodem na Secretaria de Justiça, outras caem no palácio do governo do Estado.
Na tarde de 9, todas as tropas legalistas haviam abandonado a cidade, através do Ipiranga. Para trás ficaram apenas os defensores do QG da 2ª RM; do 4º BFP e da subestação de força da rua Paula Souza, cuja torre até hoje guarda marcas de balas de canhão.
Os revoltosos, que não viam mais possibilidade de continuar a luta, já se preparavam para deixar a capital. Todavia, ao constatarem que São Paulo havia sido abandonado pelos defensores da legalidade, um clima de euforia e vitória tomou conta dos comandados de Isidoro e Miguel Costa.
O povo, que há quatro dias não saia às ruas, foi aos poucos enchendo as praças. No largo São Bento, palco de violentos combates, encontraram os líderes do levante, que juntamente com autoridades municipais organizaram uma guarda para proteger o comércio dos saques.
Porém, os momentos mais difíceis ainda estavam por vir. Acantonadas na Penha e no Ipiranga, as forças legalistas aguardavam o momento ideal para novo ataque.
Na manhã do dia 11, 18 mil homens cercam São Paulo. O general Sócrates ordena que suas baterias assestadas no outeiro da Penha, abram fogo indiscriminadamente contra a cidade. Seu plano era destruir os rebeldes nem que para isso fosse São Paulo riscada do mapa.
Através do general Abílio de Noronha, que se encontrava preso, Isidoro Dias Lopes e Macedo Soares fazem um apelo ao comandante legalista no sentido de que poupasse a cidade do bombardeio, já que a vítima maior era a população civil. Mas o general Sócrates se limitava a dizer que "os danos do bombardeio podem ser reparados, e os danos morais que os rebeldes haviam provocado no governo da República, não". Por isso, os bombardeios continuariam.
No dia 20, Eduardo Gomes voa do Campo de Marte, no Rio, com a missão de jogar panfletos revolucionários na cidade e uma poderosa bomba no palácio do Catete. Mas o avião faz um pouso forçado em Cunha, perto de Parati (RJ), e ele é preso. Próximo ao 5º BFP o capitão Joaquim Távora tomba morto.
A 27 de julho, Isidoro e Miguel Costa reúnem o alto comando revolucionário e decidem que não podem mais permitir que a população continue sendo massacrada. Às 22 horas de 27, treze composições deixam a capital em direção a Bauru (SP).
Sempre combatendo, a Brigada São Paulo se instalaria em Foz do Iguaçu (RS) onde, em dezembro do mesmo ano, recebe a adesão da Brigada Gaúcha, comandada por Luís Carlos Prestes, capitão do Exército que, em outubro, havia sublevado o Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, onde servia.
As duas Brigadas formam a 1ª Divisão Revolucionária, que durante dois anos e um mês percorreria, a pé e a cavalo, 25 mil quilômetros do território brasileiro, sob o comando de Miguel Costa, tendo Luís Carlos Prestes como chefe do Estado Maior. Exilados na Bolívia em 1927, os revolucionários da coluna Miguel Costa/Prestes participariam intensamente das conspirações que resultaram na revolução vitoriosa de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder.
Quando o último trem dos revoltosos deixou a cidade, às 4 horas da manhã do dia 28, os sinos das igrejas de São Paulo badalaram fortes. Era o anúncio do fim dos dias mais sangrentos que a cidade viveu. São Paulo, fundada em 1554, nascera de novo naquela manhã fria de 28 de julho de 1924.

Texto Anterior: Testemunhas falam da guerra de 1924
Próximo Texto: PATENTE; BABUÍNO; DICIONÁRIO
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.