São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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Era uma vez... já não é mais

ALFREDO JERUSALINSKI; EDA ESTEVANELL TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Como se prova a autenticidade de uma filiação?
Entre os hebreus, a pertença de um filho era testemunhada pela mãe. Entre os romanos, bastava o reconhecimento paterno. Na atualidade, a última palavra pertence ao DNA.
Bancos de esperma, fecundação in vitro, fetos congelados, seleção genética... Ter um filho, hoje, parece distante das românticas vicissitudes da conjugação amorosa.
Paralelamente, o discurso da maternidade sofre outras transformações: as mulheres já não ficam obrigadas a dotar de prole (mão-de-obra) as suas famílias camponesas, nem de primogênitos para assegurar a continuidade de uma dinastia, tampouco a gestar filhas destinadas a manter, com seus casamentos, as riquezas familiares. Apesar das resistências tradicionalistas, a incorporação da mulher à massa industrial tende a desligá-la das imposições simbólico-coletivas relativas à maternidade, deixando esta cada vez mais ligada ao campo, aparente, das opções individuais.
A realização pessoal de uma mulher reconhece, na atualidade, outras vias além do fogão e da mamadeira, na medida em que ela participa igualitariamente das artes e dos ofícios que constituem os valores sociais da modernidade. Neste marco, ter um filho aparece como um valor equivalente a outros possíveis.
Na clínica atual, a neurastenia própria da falta de um parceiro sexual regular é bem mais frequente que a cronificação histérica relativa à frustração da maternidade. De fato, as mulheres realizadas profissionalmente, que atingiram a "maturidade" em solidão, são maioria em relação às "solteironas" que "ficaram para titias".
Porém, nas comunidades onde vigora um estrito controle da natalidade, como China e Cingapura, a restrição à gravidez é vivida pelas mulheres como uma privação. Estaríamos diante de uma disposição particular de desejar o proibido, ou se trataria de uma tendência incoercível própria da feminilidade?
Freud nos oferece neste ponto a sua famosa equação "pênis = filho", através da qual sustenta a idéia de que tanto o filho quanto o pênis constituem um modo de dar corpo a um valor essencial nas nossas culturas. Mais do que um evento natural, ou uma realização instintiva, ter um filho representa, para uma mulher, uma forma de restituir em seu corpo o que a cultura lhe assinalou como uma falta. Assim, a procura da maternidade seria um modo simbólico de realizar a sua feminilidade.
Qual seria, para qualquer mulher, a vantagem de penhorar a sua saúde, deformar seu corpo e limpar excrementos durante um par de anos pelo menos? As vantagens da maternidade não parecem para nada reais, elas parecem –se as há– estar todas do lado simbólico.
Mas o que aconteceria se nossa cultura se afastasse dessa tradicional forma de simbolizar seus valores essenciais através do corpo humano e passasse a fazê-lo por meio de artefatos especialmente fabricados para este fim? Os artefatos pós-modernos oferecem uma realidade virtual que, mais do que representar a extensão das habilidades de nosso corpo, o substituem com notória vantagem.
Tanto na inteligência quanto no gozo, os artefatos se mostram melhor e mais constantemente dispostos do que nossos corpos que suportam a inconstância de nossas subjetividades e as fraquezas de sua sensibilidade. Talvez por isso surja o ideal moderno de reduzir o corpo humano a uma condição de artefato biológico suprimindo-lhe toda subjetividade.
Se nem o pênis nem o filho significassem mais qualquer coisa relativa a uma potência, certamente a diferença sexual perderia sua importância tanto quanto a perderiam as crianças.
Não estamos já assistindo a esta transformação? Quanto se conserva do tradicional apotegma "His majesty the baby"? A posição mais característica da infância parece ser a de morar entre uma mãe dispersiva e um pai desqualificado. O que, tomado pelo seu avesso, quer dizer que a vocação paterna e materna tem diminuído significativamente na sua motivação. A criança, motivo de tais vocações, já não tem a mesma importância.
Se os filhos hoje em dia pagam muito menos pelas culpas dos pais, pelas suas honras e desonras, esta autonomia também se alastra por consequência dos pais se verem muito menos representados pelos filhos. Em nome de que, então, se fariam os esforços que demanda ser pai ou ser mãe?
Paradoxalmente, em poucos momentos a humanidade demonstrou tanto interesse pela infância. Mas, se aparecem necessários um estatuto da criança, ou uma declaração universal de seus direitos, talvez seja para protegê-la desde a ordem pública, na medida em que ela não fica protegida o suficiente no plano privado.
A campanha que atualmente se desenvolve nos EUA para proteger as crianças de uma suposta epidemia de abusos sexuais parece estar na mesma direção. Da mesma ordem é o abandono familiar que padecem as crianças de rua: as manifestações de extermínio representam vinganças privadas (e indiscriminadas) contra a delinquência, enquanto o âmbito público tenta (ou faz a paródia de) assumir a defesa das crianças.
Concomitantemente, a indústria dedica uma enorme porção de sua atividade a fabricar objetos específicos para a infância. Desde brinquedos até montagens pedagógicas, desde uma inacreditavelmente extensa cosmética para bebês até sistemas de segurança nos carros.
Milímetro a milímetro, a sociedade industrial coloca a criança numa relação de adaptação recíproca com artefatos cuja eficácia torna ridículo qualquer esforço de satisfação produzido pelos pais.
Restringido o seu lugar simbólico na família, colocada na posição de ter que dispor a qualquer custo dos objetos sem os quais lhe é impossível se sustentar no discurso coletivo, a criança da pós-modernidade fica capturada numa armadilha violenta: "cada um por si", onde já não vige mais o "Deus por todos".
Aqui entra em cena o super-herói. Protagonista central de nossa mitologia moderna, ele acompanha os efeitos póstumos da fé racionalista, multiplicando-se ao infinito. Super-homem, Batman, Gavião Negro, Wolverine, Homem-aranha, Marvel, o Surfista Prateado, Thor, Flash, Homem de Ferro, He-Man, She-Ra, Hulk, Robocop, etc. Todos participam da imortalidade embora condicionada a um objeto, do qual depende a sua força descomunal e sua habilidade superlativa. Objeto incorporado, real ou virtual, ligado a sua origem ou introduzido pela ciência, é sempre dele que dependem estes invejáveis seres que tudo podem sem precisar de ninguém.
O que confere às Tartarugas Ninjas a sua velocidade, força e habilidade, não é o que aprenderam de seus fracassos ou da transmissão de um saber, mas a sua mutação produzida pela radioatividade. O Martelo de Thor, a mecânica incomparável do equipamento de Batman, a espada todo-poderosa de He-Man, demonstram-nos que a chave do destino em nada depende da relação com nossos semelhantes. O cerne da vida, do bem e do mal, se joga na descoberta e na apropriação do objeto certo. Uma figa dotada de todas as razões da ciência. Um talismã operado desde os códigos infalíveis e definitivos da computação.
Neste material de leitura comum das crianças, prestes a deixar de sê-lo ou dos que não se resignaram a distanciar-se de sua própria infância, encontra-se uma espécie de guia prático da vida cotidiana atual. Desde a corrupção até a informática, da dimensão universal da política à organização da delinquência, da força nuclear ao raio laser, desde a burocratização do Estado até os buracos negros, nada escapa às vivências dos super-heróis. Eles estão em tudo, o que quer dizer que não estão em nada.
Tirando a limpo: eles não precisam de um lugar social para fazer o que fazem; são sempre defensores de causas inspiradas numa ética obscura: fazer o "bem" sem consultar a ninguém. Oferecido como personagem central para a identificação das crianças, o super-herói aparece mais como promessa do que como metáfora.
Enquanto o Gato de Botas não convida ninguém a ser um gato nem a possuir as botas mas a apreciar o valor da astúcia, os fantásticos heróis nos obrigam à inveja de qualidades nada subjetivas: sua força, sua imortalidade, sua ilimitada resistência, sua infinita possibilidade de metamorfose.
Ascetas afetivos, oriundos de uma ruptura absoluta na sua filiação, realizadores sem laço social, militantes sem partido, radicais sem ideologia, talvez apenas manifestem a metáfora da morte do sujeito. Porém, o que não cabe duvidar é que eles constituem o modelo mítico do membro ideal da horda pós-moderna.
Mas o que tem a ver as nossas crianças com esta nova espécie zoológica que talvez caberia batizar de "Homo fantasticus"? Simplesmente, elas são as destinadas a encarnar o que a civilização idealiza como seu futuro. Nas lojas de videogame podemos contemplar uma prévia dessa paisagem social: cada um com seu artefato, um gozo sem laço social.
Originária de uma mulher de escassa vocação materna e de um pai melancolizado pela sua impotência, o que resta para a criança atual a não ser o sonho de se fusionar com algum objeto maravilhoso para, por fim, realizar sua entrada triunfal e definitiva no universo perfeito da realidade virtual?

ALFREDO JERUSALINSKI é psicanalista, autor de "Psicanálise e Desenvolvimento Infantil", entre outros.
EDA ESTEVANELL TAVARES é psicanalista. Preparam juntos para a Escuta o livro "Os Super-heróis Não Usam Relógio"

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