São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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O poder que infatiliza

RENATO JANINE RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em 1960, o historiador francês Philippe Ariès lançava um livro de impacto, que depois teve uma versão condensada, traduzida em português como "História Social da Família e da Criança" (Zahar).
Embora a história das mentalidades não fosse coisa nova, esta obra de um "outsider" à academia constitui um de seus melhores exemplos, em especial pelo efeito: Ariès não se limitou a fazer obra de bom "scholar". Ele revolucionou a percepção do que é, ou foi, a infância.
Até o século 17, conta ele, o amor aos filhos não era coisa óbvia: basta lembrar o renascentista Montaigne, que diz ter perdido "duas ou três crianças" em tenra idade. Um pai que nem recorda quantos filhos teve! As crianças oscilam então entre o mundo dos animais e o dos adultos. São tratadas com o descaso devido aos primeiros, ou, se recebem consideração, é como adultos em miniatura. Nem se imagina então o que será a grande descoberta do século 18: a existência de um mundo próprio e autônomo da infância.
Somente com Rousseau, Pestalozzi e outros se conceberá que a mente infantil opera diferente da nossa. A diferença da criança frente ao adulto não está na carência, na insuficiência, no "ainda não" (que exaspera o professor, irritado com os erros do aluno), mas em princípios estruturados de outra forma.
Com essa descoberta, análoga embora anterior à das diferenças entre as culturas humanas (que permitiu respeitar os selvagens), inicia-se uma filosofia da educação, ou da formação ("Bildung") do homem, rompendo com o ensino acumulativo e a velha pregação de preceitos. Ao mesmo tempo, aparece um forte afeto pela criança. É este um dos modos pelos quais nasce a nossa época.
Para o historiador das culturas, porém, os tempos não seguem todos o mesmo ritmo. Assim, é fácil datar dos séculos 17 e 18 a gradual emergência do amor filial, ao recuarem a etiqueta e as maneiras regradas e contidas dos cortesãos, ao avançarem a burguesia e seus modos expostos como "naturais"; mas, pela mesma época, há algo no pensamento social que se reforça, vindo da Idade Média. Refiro-me ao paternalismo do governante, ou seja, à puerilização dos adultos, enquanto seus subordinados ou súditos.
Dizendo de outro modo: deste o século 17, a criança começa a existir como objeto próprio de conhecimento e afeto. Mas nem por isso sai de cena a velha redução dos adultos a crianças, na relação com o governante. Este alega, até o século 19 e em certos casos ainda hoje, deter a sabedoria e o saber necessários ao cuidado com os pouco racionais, isto é: nós, que não temos o poder.
Uma das principais justificações para o poder, na Idade Média e sobretudo nos séculos 17 e 18, está no papel de protetor atribuído ao governante. Este papel vem da imagem de pai que se relaciona com o filho, ou de marido com sua mulher. O superior protege sempre o inferior: filho e mulher são tidos por seres carentes, necessitados de um tutor. O poder se diz tutela. No caso da mulher, porém, que o direito romano em sua versão medieval chama de "menor perpétua", a tutela jamais tem fim.
Ora, o importante é que estes termos –que a princípio se aplicam a relações que diríamos privadas, entre indivíduos, e que no caso dos menores de idade continuam valendo ainda em nossos dias– são transpostos para as relações de poder. Como o papa recebe um anel ao ser coroado, simbolizando seus esponsais com a Igreja, toda relação de poder, a começar pela do rei com seu reino (usa-se a palavra feminina "respublica") e a do bispo com sua diocese, passa a moldar-se na idéia de um protetor que desposa a protegida.
Daqui, duas consequências. Primeira: o protetor não pode dissipar o patrimônio da protegida. O governante que abusar do bem público será punido como mau tutor, e terá seus atos anulados.
Segundo consequência, esta mais problemática: a protegida é "menor perpétua", e jamais sairá dessa condição. Esta idéia, aliás, se acentua à medida que se fortalecem os governos, com o fim da Idade Média e o surgimento de vários despotismos e absolutismos. Todo súdito está sob tutela.
Uma doutrina assim se constitui, desde a Idade Média mas se reforçando naqueles inícios da Modernidade que curiosamente chamamos de "Antigo Regime" (os séculos 17 e 18), a sustentar que o governo certo é quando o rei age como pai e os súditos como filhos. Entre eles, circula o amor, não o medo. Assim, mesmo quando o rei manda executar um súdito, é para a salvação de sua alma e pelo exemplo dado aos outros.
Essa doutrina ainda hoje soa atraente, quando despida de seu contexto, porque parece preocupada com o bem geral. O problema é justamente o contexto, que prova tratar-se da mais acabada tentativa de afirmar os homens como pueris, de retirar da espécie humana, salvo alguns governantes, o poder e o direito de decidir seus rumos.
Assim, a defesa do bem do povo, ou do "salus populi", acaba servindo de meio para a infantilização dos homens. Veja-se o dito famoso, "Salus populi suprema lex esto", o bem (ou salvação) do povo deve ser considerado como lei suprema. O que ele significa é, simplesmente, que em casos de emergência ou exceção, o governante pode suspender o curso normal das leis e instituições, para "salvar o povo". Atos institucionais, e não soberania popular, este o resumo do adágio. O povo é objeto, não sujeito, da ação política.
Aqui, então, o nosso problema. O que é ver os homens como crianças? Este o grande recorte, ainda em nossos dias, a separar a política democrática da autoritária. A democracia, e aqui adaptamos Kant em seu ensaio "O que é o Iluminismo", tem uma ligação indissolúvel com a maioridade, com a idéia de que os homens são adultos –racionais, livres e responsáveis por seus destinos.
Podemos até arriscar uma tese: o grande feito das revoluções do século 18, em especial a Francesa, consistiu em negar a menoridade. Lembremos o filme de Ettore Scola, "Casanova e a Revolução", que em vez de cair no simplismo de denunciar os abusos do regime monárquico (seus excessos), mostra o fracasso de sua pretensão a tutelar os súditos, a tratá-los como crianças (o que seria sua essência).
O que desaba em 1789 não são os exageros da monarquia, que um rei moderado resolveria (tese conservadora), mas sua própria essência. É por isso que os regimes democráticos, em nossos século, mesmo quando por razões semi-folclóricas –a que felizmente escapamos no plebiscito de 1993– conservam uma cabeça coroada, são por essência republicanos, com o poder conferido em eleições.
Podemos concluir voltando à infantilização. Não imaginemos que nada, na história, seja dado por natureza. Nem o amor do pai ao filho, nem a relação democrática em que os homens negam o poder excessivo, nem a relação autoritária, em que um rei ou ditador pretende proteger-nos, afinal da contas, de nós mesmos: nenhuma destas formas de afeto ou poder é natural. Todas elas têm sua data. Todas foram construídas, ainda que inconscientemente, pelos homens.
Agora, se isto é verdade, o maior cuidado que devemos ter é com as infantilizações. Será por acaso que ao nascer o amor dos pais aos filhos, e construir-se a criança como objeto de afeto, se reforce o poder do governante, associado à figura do pai que castiga por amor? Questão a pesquisar.
Mas será por acaso que nos últimos duzentos anos todos os passos para a democracia, da queda da Bastilha à queda do Muro de Berlim, tenham em comum a recusa de um rei-pai ou de seus sucedâneos, como o Grande Irmão? Questão, talvez, decidida: nem um monarca dito sagrado, nem um partido dito revolucionário têm o direito de puerilizar os homens.

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