São Paulo, domingo, 24 de julho de 1994
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O real e a fome

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Nas últimas semanas surgiram várias dúvidas sobre os 32 milhões de famintos. Sempre me intriguei com esse número. Afinal, o Brasil produz 75 milhões de toneladas de grãos. Isso dá 500 quilos por pessoa, bem acima da média mundial que é de 320 quilos.
Por que fome? Pode-se argumentar que uma coisa é ter alimentos; outra é poder comprá-los. De fato, a nossa renda é muito concentrada –alguns têm muito e a maioria têm pouco. Mas o excesso de renda explica bem o excesso de iates, automóveis importados, jóias, viagens internacionais etc. –mas não a comilança. Afinal, o estômago humano tem seus próprios limites. Portanto, aquele número continua misterioso.
Vejamos de um outro ângulo. Dos 75 milhões de toneladas de grãos, o Brasil exporta 15, restando 60 para consumo interno. Isso baixa a média acima para 400 quilos por habitante/ano. Mesmo assim é alta. Com tanto alimento, não há como justificar os 32 milhões de famintos. Há algo errado nessa conta.
O professor Nelson do Valle Silva, do Laboratório Nacional de Computação Científica do CNPq, jogou um pouco de luz nessa escuridão. Ele também acha que o número está superestimado, por vários motivos. O principal deles é o fato dos chamados "especialistas" terem usado a renda monetária para estimar a quantidade de alimentos consumida, esquecendo-se que, na zona rural, muitas pessoas comem sem ter renda –ou tendo pouca renda. Além disso, ele aponta o erro de considerar as crianças como consumindo a mesma quantidade de alimentos dos adultos.
As coisas começam a clarear, mas o quadro continua impreciso. A "Carta HM de Análise da Conjuntura Agropecuária" deste mês nos informa que o Brasil produzirá 32 milhões de toneladas de milho e 24 milhões de toneladas de soja, o que constitui um novo recorde histórico. A produção de arroz cresceu quase 11% em relação a 1993, e o feijão, quase 30%! O que mais entusiasma é saber que a maior parte desse crescimento se deu exatamente nas regiões mais pobres –Norte e Nordeste.
O Brasil é um país abençoado. No meio de tanta crise, a agricultura consegue crescer 7%. Entre nós, especialmente nas zonas urbanas, a fome, a pobreza e a doença decorrem de falta de acesso à renda e bons empregos, e não de escassez de produção. Mas, ainda assim, o número é exagerado.
De qualquer forma, é aí que reside o nosso grande problema: empregos. Os investimentos para criar oportunidades de trabalho são altos –cerca de US$ 30 mil por emprego. Por sua vez, a atraente ciranda financeira sempre remunerou muito mais a especulação do que a produção. Até aqui era puro romantismo esperar que os capitais viessem a dar as costas aos sedutores 25% de juros reais ao ano para se dirigirem à produção que, em geral, tem maturação demorada e rentabilidade incerta.
Por isso, a estabilização da moeda e o fim da ciranda financeira que vêm sendo perseguidas pelo Plano Real são absolutamente essenciais para reorientar os capitais, o que permitirá criar empregos, gerar renda, diminuir a pobreza, matar a fome e afastar a doença. Essa é a verdadeira campanha na qual todos nós temos que nos engajar. O resto é proselitismo.

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