São Paulo, quarta-feira, 27 de julho de 1994
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Ética jornalística e oligarquias

ROBERTO ROMANO

Admiro a lucidez e objetividade permanentes de Junia Nogueira de Sá, ombudsman da Folha. Tenho dúvidas sobre sua análise do comportamento jornalístico, exposta na coluna dominical última (24/07/94).
Em termos estritos, suas observações acertam: quem noticia é enviado pelo jornal e representa o público junto à fonte. É preciso rigor e sangue frio diante dos que são ou fornecem a notícia. Mas o jornalista possui direitos humanos inalienáveis. A vida, a segurança física, o bom nome, tudo isso não pode ser retirado de sua pessoa apenas porque trabalha na imprensa.
Para que ele sinta o peso da ética, é preciso que receba tratamento compatível, no mínimo, com o decoro devido ao público. Neste ponto, os políticos e famosos brasileiros abusam da impunidade, exibindo um comportamento dificilmente encontrável em outros países.
Os parâmetros do regime político brasileiro são apenas nominalmente democráticos. Vivemos em federação de oligarquias, cuja abrangência vai dos conservadores explícitos aos progressistas de face dupla.
Para esses oligarcas, caluniar jornalistas é esporte favorito. Os fatos prejudicam sua imagem, os noticiários retiram suas máscaras corporativas.
A raiva contra os profissionais da imprensa expressa todo o horror que a "elite" experimenta diante da cidadania. Acostumados aos pactos secretos, nossos líderes esquecem que o regime democrático "desenvolve sua atividade no público, sob os olhos de todos", porque "todo cidadão tem o direito de estar apto para formar um juízo livre sobre decisões assumidas em seu nome" (Norberto Bobbio).
No caso da muamba oficial da seleção brasileira, o que se desejou foi manter a traquinagem, em segredo, como em segredo ficou a estripulia de muitos parlamentares no jogo do Orçamento nacional. O verbo mais usado pelos jogadores foi "aparecer".
A lei, para eles, deveria sumir do mapa, deixando as tralhas e demais engenhocas entrarem no país sem outros incômodos. Zinho considera que a culpa do escândalo cabe "aos setores da imprensa, que fizeram muito alarde sobre a bagagem". Os jogadores não avaliam o peso de seu gesto. Mas o governo não tem desculpa, ao dar adeus com o chapéu alheio.
Collor também achou "exagero" da imprensa os gastos com a Casa da Dinda. Ibsen Pinheiro parolou sobre ética, caluniando jornalistas em geral, pouco antes de ser cassado por corrupção. Bisol berra palavrões contra profissionais da notícia. O seu despautério foi similar ao de Quércia.
Alegres quando desfrutam suas benesses, os oligarcas patrícios tornam-se irados ao perceberem que a face escura aparece sob a fantasia arlequinesca.
Vale recordar, nesse clima hostil, o projeto de lei sobre a imprensa, ideado no século 19 por Fichte, o grande moralista. O filósofo previa dois casos, nos processos judiciais. Se os queixosos fossem particulares, o jornalista era passível de pena caso suas informações se mostrassem falsas. Se corretas, elas o transformariam em "acusador público", absolvendo-o. Se a crítica incidisse sobre um político, Fichte, ironicamente, aconselhava calar o nome daquela autoridade enquanto ela estivesse viva. Exceção aberta: seria permitido, arremata o filósofo, elogiar os governantes, com nome e endereço... (carta de Fichte a Beyme, 2/01/1808).
Esta lei de imprensa agradaria os nossos parlamentares. Já imaginaram? "O deputado X desviou milhões de dólares, e afirma que enriqueceu pela graça divina. Saberemos seu nome após o enterro." Esta lei calaria todos os palavrões emitidos na tribuna do Congresso contra os jornalistas.
É por essa causa que Espinosa, outro filósofo, afirmou que "as leis contra a livre opinião atingem os homens retos, e deixam incólumes os celerados".
No caso do futebol, a desculpa para o estupro da lei foi o "patriotismo". Ora, mesmo que todo o povo aprovasse o ato, ele prejudicaria o país. "Uma nação" diz Espinosa, "que desobedece as leis é uma quimera (...) a nação erra quando executa ou tolera atos suscetíveis de conduzir à sua própria ruína".
O povo erra com seus líderes. O escritor –no caso, o jornalista– que não indaga, que não critica, por medo ou cumplicidade, é mais um na lista dos corruptores. Sua culpa é maior, porque não tem o álibi da ignorância e do poder.
Quando dirigentes tornam-se indecorosos, eles perdem a autoridade. "Quem encarna a autoridade política", afirma Espinosa, "jamais pode percorrer as ruas embriagado ou sem roupas, na companhia de prostitutas. Também não pode se oferecer em espetáculo, como bufão, nem eludir ou ignorar as leis das quais ele mesmo é o autor" ("Tratado Político").
Vimos, em data recente, a mais alta autoridade brasileira abraçando uma garota alegre, cujas partes pudendas estavam à mostra. No mesmo ato, um ministro da Justiça trançava os pés, por libações excessivas ao deus Baco. Agora, o governo afronta a lei sem pudor algum.
Sem legítimas bases para exercer autoridade a partir do pensamento livre, o Parlamento e o Executivo brasileiros procuram intimidar e agredir jornalistas e intelectuais.
As agressões deixam o campo judicial para atingir a violência física. A publicidade dá lugar ao ressurgimento de velhas fichas, amealhadas na época do regime autoritário, as quais deveriam estar encerradas na lata de lixo da história. É preciso que se revide a esta campanha de medo, antes que ela chegue a patamares inauditos.
Não esperemos que, na madrugada, cadáveres de jornalistas e de críticos sejam depositados nas portas das redações, para fazer nossos homens públicos perceberem que sua oligarquia é temporária.
A indignação pública, no caso do contrabando ordenado pelo governo, indica que logo logo os intocáveis serão varridos da política, chegando o Brasil, finalmente, à democracia republicana.

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