São Paulo, sexta-feira, 29 de julho de 1994
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Mercadante faz crítica ambígua ao real

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

A estabilização da moeda é positiva, mas o Plano Real não vai resolver nenhum problema da população, que sob seus efeitos estará cada vez mais condenada à miséria e ao apartheid social.
É com esse discurso ambíguo, construído sobre o fio da navalha, que o novo vice da coligação presidencial encabeçada por Luiz Inácio Lula da Silva, deputado Aloizio Mercadante, 40, vai assumir a tarefa de contornar a crise que se instalou no PT e provocou a queda de Lula nas pesquisas.
Desgastado pelas denúncias envolvendo o ex-vice José Paulo Bisol e desorientado pelo efeito positivo do real sobre a candidatura de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o PT joga em Mercadante a tarefa de transmitir pela TV a idéia de que "só um governo popular pode dar âncora social à establidade econômica".
A escolha de Mercadante consolida a estratégia, esboçada há pelo menos três semanas no PT, de atacar FHC sem no entanto condenar a estabilidade econômica. A frase "moeda forte e salário fraco" resume a nova oratória petista.
Na entrevista que segue, concedida à Folha no início da madrugada de ontem, em São Paulo, Mercadante diz que não queria ser vice e que chegou a indicar os nomes de Eduardo Suplicy e Luiza Erundina para o cargo. "A maior oposição ao meu nome dentro do PT partiu de mim", diz.

Folha - O Lula acusou mais uma queda na última pesquisa do Datafolha. O sr., como vice, vai ter mais espaço na TV. O seu alvo é o Plano Real? O PT tem alguma alternativa ao plano?
Aloizio Mercadante - A propaganda do real foi muito bem elaborada. Só as estatais liberaram US$ 22 milhões para isso.
O plano foi calibrado para chegar às vésperas das eleições. Posto isso, vale dizer que a estabilidade da moeda tem um valor político e social.
A população precisa de uma moeda estável, ela quer isso. Mas isso não significa que esse plano não seja conservador. Só um governo democrático e popular pode fazer um acordo que dê uma âncora social à estabilidade econômica.
Com esse plano, o apartheid social vai se agravar. Essa concepção econômica liderada pelo Fernando Henrique é incapaz de entender o significado do fomento às micro e pequena empresas, ou de tratar a economia informal como um problema econômico real.
Ou ainda de verificar que o emprego não pode ser mais tratado como um subproduto do crescimento econômico. Sem a perspectiva de atenuar o conflito distributivo no país, não adianta nada estabilizar a moeda. O plano acirra o conflito.
Folha - Mas qual é, afinal, a alternativa do PT ao plano?
Mercadante - Se não houver uma redução da taxa de juros, se não houver uma política de negociação salarial e de contrato coletivo, se não houver uma política para a cesta básica e uma discussão séria sobre as câmaras setoriais, não se muda o país.
Folha - O sr. vira vice no momento mais crítico da campanha de Lula. Está assustado?
Mercadante - Em política a gente é mais escolhido do que escolhe. Minha vida de mandato é muito curta, três anos e meio. Nesse período fui exigido em circunstâncias críticas, como as CPIs do Collor e Orçamento.
Mas, inegavelmente, essa é a tarefa mais difícil da minha vida. A responsabilidade desse projeto é muito grande, enorme.
O que está em jogo no Brasil são duas visões de reformas estruturais: a continuidade do projeto neoliberal ou a constituição de um projeto democrático e popular. Eu nunca poderia imaginar que iria ser colocado numa tarefa dessa.
Folha - Não imaginava como?
Mercadante - Na segunda-feira, durante a reunião da Executiva Nacional (do PT), houve uma rodada de sugestão de nomes e alguns companheiros me indicaram.
Apareceram os nomes da Luiza Erundina (ex-prefeita de São Paulo) e do Eduardo Suplicy (senador do PT-SP), ambos apresentados por mim, além do Célio de Castro (vice-prefeito de Belo Horizonte pelo PSB) e do Paulo Freire (educador).
Ficou também decidido que a comissão que iria estudar os nomes para indicar um seria composta por mim, o Rui Falcão (presidente do PT) e o Luiz Eduardo Greenhalgh (coordenador da campanha petista), além do Lula.
Eu pedi então para que retirassem meu nome, por várias razões. Não me sentia em condições...
Folha - O sr. foi atropelado?
Mercadante - Eu saí da reunião antes dela terminar para ir a um debate em São Bernardo.
À noite, quando cheguei em casa, recebi vários telefonemas que diziam: "o pessoal está achando que é você, não tem outro jeito". Eu respondi que havia retirado meu nome, não podia aceitar.
Na tarde de terça, cheguei ao comitê e vi que todos estavam fechando no meu nome. Eu discordei, tentei apresentar todos os argumentos, mas me questionaram, não aceitaram.
Eu disse: "gente, eu não posso tomar uma decisão dessa, não falei nem com minha família. Vocês estão me colocando numa situação...tem outras opções... vocês estão me colocando numa situação..."
Folha - E depois?
Mercadante - Fui para a produtora conversar com o Lula, o Falcão e o Greenhalgh. Isso na terça.
Lá o Falcão colocou a posição dizendo que era meu nome, o Greenhalgh reforçou e o Lula fez uma intervenção dizendo que a posição tinha que ser essa, que eu tinha que assumir.
Liguei imediatamente para minha mulher, que estava dando aula. Mandei tirar ela da sala de aula. Digamos que ela ficou muito impactada, muito nervosa.
Os meus filhos pequenos têm sido muito expostos nessas situações todas. Na CPI do Orçamento recebi ameaças, tive que tirar meus filhos de casa, foi muito duro.
Folha - O que sua mulher falou exatamente pelo telefone?
Mercadante - A Regina disse: "Pô Aloizio, e as crianças? Uma mudança como essa, nós nunca conversamos sobre isso".
Eu disse: "Olha Regina, não sei se eu vou poder conversar pessoalmente com você, as coisas estão acontecendo e você sabe que minha posição não é essa, mas isso é um projeto coletivo e eu tenho um papel nesse projeto. O que o Lula representa para o Brasil é uma coisa muito maior do que eu". O resto vocês conhecem. Na noite de terça, homologaram meu nome.
Folha - A avaliação que se faz é que o Lula tomou a campanha nas mãos, contrariando as tendências mais radicais do partido que eram contra seu nome.
Mercadante - Que o Lula teve um papel muito importante nesse processo, teve mesmo.
Mas a avaliação da coordenação foi que não houve qualquer corte de tendência interna do PT nessa escolha. Foi uma opção de perfil.
As exigências são essas, as tarefas são essas, o debate é esse, o momento é esse, os instrumentos são esses, o perfil mais adequado é esse. Eu diria que a maior oposição ao meu nome fui eu.
Folha - O sr. teme agora ter sua vida particular mais investigada, mais vasculhada? Está preparado para passar por situações de constrangimento?
Mercadante - O fundamental da minha vida já foi investigado. Mas isso faz parte da transparência e de um certo padrão de relacionamento entre ética e política que eu ajudei a construir.
Folha - O sr. era cotado, até assumir a vice, como forte candidato a ministro da Fazenda de Lula. Isso continua valendo?
Mercadante - Nós não estamos discutindo ministério. Você não pode fazer campanha pensando em distribuir cargos. O Lula tem que ter liberdade de montar seu ministério. Ele vai escalar a seleção.
Folha - Se o Lula perde a eleição, o sr. fica sem mandato.
Mercadante - Eu troquei o certo, já que estava com uma eleição garantida, pelo certo, porque nós vamos vencer essa eleição.
Na vida pública, você nunca é, você está. O caminho de voltar a dar aula, é um caminho muito fácil.
Folha - O PT demorou demais para resolver o caso Bisol?
Mercadante - Não acho isso. Não há justiça sem direito de defesa e isso nós tínhamos a obrigação de dar ao Bisol.
Folha - O Bisol errou ou não?
Mercadante - Eu acho e ele acha que errou. Não poderia ter apresentado emendas ao Orçamento dessa forma depois da CPI. Nós exigimos um novo padrão de elaboração do Orçamento e temos que ser coerentes e fiéis a ele.

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