São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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A novela do Plano Real ainda continua

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Plano Real, ex-Plano FHC (fase 3), está vivendo uma etapa novelesca em que a propaganda oficial e o desejo do povo de ganhar mais uma "Copa do Mundo" embrulhou as expectativas.
A política econômica tentando transformar "ossos em ouro", como na recém-terminada novela das oito da "TV Globo", proclama que temos uma moeda forte! Mas a realidade é muito diferente do suposto imaginário popular televisivo ou fantasias governamentais.
A inflação vai ficar baixa em agosto e setembro, mas os preços foram para o espaço e os salários de mais da metade da população estão no subsolo do Terceiro Mundo. O poder de compra das famílias que ganham de um a oito salários mínimos caiu 12,7% (em URV-real) desde março (dados do IBGE); a cesta básica está em mais de US$ 100, para um salário mínimo de menos de 70.
Assim, temos uma moeda forte por decreto: a "paridade" dólar-real foi fixada arbitrariamente, não obedece a qualquer conceito de paridade real de poder de compra. Por isso, as comparações internacionais entre preços e salários em dólar são tão absurdas: preços de Nova York e salários mais baixos que no Paraguai.
A propaganda sobre moeda forte (O real vale mais do que o dólar!) é, portanto, grotesca. Lembra-me Salazar com o "escudo forte" e a arrogância de Reagan entre 81 e 85, na sua diplomacia do dólar forte e juros altos.
Mas, pelo menos, Salazar tinha uma justificativa: o país estava comercialmente fora do mundo e podia exportar em massa portugueses para as colônias ou ex-colônias.
Quanto a Reagan, podia obrigar o resto do mundo a financiar os déficits americanos. Mas o dólar forte só aguentou cinco anos.
Como o Brasil não está em nenhuma das duas situações, fico matutando o que nos aguardará, passado o entusiasmo (?) eleitoral, com esta "moeda forte".
O desejável é uma moeda estável (desindexada) e não uma moeda forte. Esta última, por definição, é privilégio dos países do Primeiro Mundo que dominam o sistema financeiro mundial.
Para manter esta caricatura de "moeda forte", teremos de dolarizar toda a economia, abrir mão de ter moeda, como a Argentina. Só que não dá sequer para usar o slogan da vodca Orllof e dizer "eu sou você amanhã". A Argentina levou 20 anos para desindustrializar-se e tinha padrões de vida (de salário e educação) muito superiores aos do Brasil. Assim mesmo, não está aguentando.
Vejamos agora a coerência interna da "política macroeconômica". A política monetária anunciada fixa um limite de expansão dos meios de pagamento arbitrário, já que não se sabe qual será a demanda de moeda nova, nem o volume de expansão da base monetária provocado pela entrada de capitais, a variação das reservas bancárias e a flutuação dos juros.
Isto é, a "âncora monetária" está operando no escuro e provocando uma grande instabilidade nas previsões de juros, liquidez e na "estabilidade monetária".
Com juros nominais altos, mantida a moeda financeira indexada, estoques reduzidos e sem horizonte confiável de estabilidade político-econômica, o mais provável é que os empresários reajam à política monetária instável diminuindo a produção, reduzindo o emprego e subindo as margens de lucro.
Seguir-se-á, provavelmente, uma recessão provocada pela contração da produção, respondendo à queda no consumo e alimentada pelos baixos níveis do investimento público e privado.
Com os efeitos fiscais provocados pela dívida interna, pela queda no consumo e, agora, com a saída indignada e correta de Osiris Lopes, a receita esperada pela União pode cair em relação às previsões da Receita. Mas a execução orçamentária "austera" tentará garantir, à custa dos gastos sociais, o equilíbrio orçamentário (?) de não se sabe bem que Orçamento.
Os pesos pesados da economia apoiam o candidato do governo às próximas eleições, mas continuam defendendo os seus interesses "pouco legais", como denunciou Osiris, cujas declarações, salvo sobre os jogadores da seleção, foram pouco repercutidas na mídia.
E o que dizer da "âncora cambial"? A equipe econômica reconheceu que as divisas com a entrada do "smart money" não são de confiança nem permitem a dolarização total da economia agora.
Esperando a recessão, contentaram-se (temporariamente?) com a fixação arbitrária da paridade entre o real e o dólar e permitiram a flutuação livre (?) da taxa de compra de divisas em mercado.
Esta precária e original "âncora" cambial só com uma "banda" deverá durar o que for possível e será supostamente coadjuvada, a curto prazo, por uma "âncora fiscal", isto é, um novo arrocho no gasto público essencial.
Sem perspectiva de crescimento sustentado, sem políticas de preços e salários pactadas e com a instabilidade fiscal, monetária e cambial, as expectativas "reais" dos agentes econômicos são de que tudo será feito para sustentar a ilusão de estabilidade e esconder as tendências recessivas em agosto e setembro. Depois das eleições haverá uma fase quatro, ou então ao "vencedor as batatas".
O governo faz propaganda do real e acusa a oposição de "torcer" contra o plano. Ora, um plano não é jogo da seleção para que todos possamos torcer "in pectore". Suas vítimas, em especial parte da classe média e do povo, podem até torcer, imaginando a vitória sobre a inflação. Mas uma velha economista como eu, escaldada de ver tantas "boas intenções" irem para o inferno, não tem o direito de "torcer".
A crítica dos economistas da oposição não é uma "estratégia eleitoral", pois há quem ache (corretamente, do ponto de vista eleitoreiro) que não se deve criticar um plano que dá a ilusão da estabilidade desejada pelo povo.
Como não somos "economistas populistas", que manipulam ou se servem das ilusões do povo, temos de dizer a verdade, doa a quem doer. Esta é a nossa modesta contribuição à verdadeira estabilidade que desejamos mais do que os economistas da situação.
Os economistas neoliberais ou "libero-sociais" sustentam que, garantida por três ou quatro meses a estabilidade de preços, os empresários voltarão a investir e a economia de mercado encontrará o seu "leito natural".
A este respeito convém respeitar tanto os fundamentos da macroeconomia quanto as evidências das dezenas de planos de estabilização implementados "urbi et orbi" sob inspiração do "Consenso de Washington", além das declarações abertas ou veladas dos próprios empresários brasileiros.
Afirmo que o plano, além de ser contra os interesses reais do povo, não se sustenta macroeconomicamente pelas seguintes razões:
1) Aumento do conflito distributivo (antes a razão central dos modelos teóricos dos atuais economistas no governo, "ex-neo-estruturalistas", que pregavam com afinco a "neutralidade do plano").
2) Desequilíbrio fiscal potencial crescente, com piora na alocação de recursos públicos, não permitindo sequer o uso do Fundo Social de Emergência como política compensatória (recomendado pelo Consenso de Washington).
3) Política cambial inconsistente com a política monetária, se se pretende manter o superávit comercial e as reservas internacionais por mais de seis meses. Resultado de uma dolarização a meias, os economistas do governo ficam esperando a fase quatro, após novembro, talvez sonhando com a dolarização completa.
4) Uma estabilidade "espúria" não leva à retomada do crescimento e do emprego. Ao contrário, os componentes ativos da demanda efetiva estão contidos, em particular o investimento público e privado, e o consumo dos trabalhadores está reduzido entre 15% e 20%.
Estes só mudarão se houver uma política deliberada de investimento autônomo do governo e induzido para boa parte do setor privado, mediante uma política de financiamento adequada à produção, às exportações e ao abastecimento da cesta básica. Recursos existem, simplesmente estão sendo esterilizados para tentar sustentar uma política macroeconômica insustentável.
Concluo os meus argumentos dizendo que esta "novela" do Plano Real está levando longe demais os poderes de sua alquimia. Esta, embora possa ser parada entre 3 de outubro e 15 de novembro, ainda levará mais de um ano para que seus efeitos maléficos mais imediatos sejam corrigidos.
Os ingênuos e bem-intencionados que me perdoem, mas será melhor que, em vez de torcer, pensemos a sério na estabilização possível, no emprego e na regeneração deste país, que vai precisar menos de sonho, ilusões e campeonatos e mais de coragem, verdade e paciência para negociar caminhos possíveis para todos.

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