São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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País civilizado é o que cumpre as leis

OSIRIS LOPES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Por um ato pessoal –o pedido de exoneração do cargo de secretário da Receita Federal–, decorrente da minha consciência profissional e de cidadão, ví-me personagem de uma crise dentro dos marcos do governo federal.
A reação popular e institucional que se seguiu ultrapassou os limites da previsibilidade normal e possibilitou se manifestasse o pensamento de vastos segmentos do povo brasileiro acerca da ética na administração pública e da aplicação da lei no país.
Essa manifestação popular demonstrou a existência de um processo de mudança ética na sociedade brasileira, que só havia aparecido em outras ocasiões, mas que adquiriu, em face das circunstâncias, maior relevo.
Os festejos e alegrias da comemoração da conquista do tetracampeonato mundial de futebol, conseguida pela seleção de jogadores brasileiros, tão ansiosamente esperada por 24 anos pela torcida, quase saiu da ordem do dia para dar lugar a um sentimento de rejeição revigorada dos privilégios, das exceções, dos favorecimentos e do "jeitinho", feito em benefício dos protegidos.
Aflorou com intensidade não antes pressentida um anseio de igualdade e tratamento justo nas relações do governo com os cidadãos, cuja síntese pode ser expressa na aplicação da lei indistintamente a todos. Fora com as mamatas, as proteções, as acomodações. Um sentimento de justiça sem privilégios passou a dominar amplos segmentos da sociedade.
A lição a ser extraída desse acontecimento é a de que, a partir de agora, os riscos que as autoridades vão correr pela adoção de atitudes voluntaristas, prepotentes ou de ofensa à lei tornaram-se maiores, uma vez que está se sedimentando uma consciência na sociedade de que a lei deve ser aplicada para todos, pobres e ricos, heróis e humildes, amigos e inimigos, indistintamente.
O importante nesse episódio foi a abertura de um espaço em que se possa afirmar a distinção entre a administração pública e o governo.
Administração, já dizia o eminente mestre Seabra Fagundes, "é cumprir a lei de ofício". Vale dizer, a administração tem um compromisso estrito com a legalidade, não se confundindo com o governo. A administração tem um corpo permanente de servidores a cumprir as funções dos órgãos onde labutam. O governo fornece as diretrizes, os programas, as políticas a serem adotadas.
Mas nem sempre há uma perfeita identidade e integração entre os dois organismos, principalmente quando o governo, nos seus objetivos imediatos de popularidade, utiliza meios de ação não acolhidas pela lei.
A administração pública e os servidores que lhe dão corporificação têm doravante à sua disposição um reforço substancial da opinião pública, para o cumprimento do seu dever, ficando cada vez mais liberadas de acatar posições determinadas pelas chefias, muitas vezes tomadas ao arrepio da lei.
A esperança dos que desejam que o país supere o estrangulamento cultural típico do atraso é a de que se esteja vivendo um processo de aperfeiçoamento das instituições e do serviço público, e que se alcance um patamar mais elevado de moralidade pública. As manifestações pela ética no serviço público não devem representar apenas uma erupção de repúdio, decorrente de um excesso de pressão de injustiças que, uma vez aliviado, tenha se esgotado.
Há também, em tudo isso, uma advertência. As autoridades, que buscam melhorar os seus índices de popularidade mediante o emprego de expedientes fáceis e na contramão da lei para conquistar a aceitação popular, hão de recolher os seus "flaps" e conduzir-se de forma a respeitar a legalidade tão desejada pela população. Num país em que as desigualdades sociais são gritantes e onde os desfavorecidos são maioria constitui séria advertência a vontade demonstrada por todas as classes sociais de que a lei seja igualmente aplicada a todos.
O sentimento de exclusão, de marginalização dos benefícios de uma sociedade civilizada, que se manifesta nesse acontecimento, consiste num aviso para que as práticas governamentais de favoritismo sejam proscritas.
Para chegar ao Primeiro Mundo este país há de antes civilizar-se. E país civilizado é aquele em que as leis são cumpridas.
Há de ficar ultrapassada a fase de nossa história em que cumprir a lei, irrestritamente, é o revolucionário.

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