São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Kika contra morbidez

FERNANDA SCALZO
DA REPORTAGEM LOCAL

Kika contra morbidez
A heroína enfrenta a câmera inescrupulosa de Andréa Caracortada
"Kika! é antes de mais nada um filme sobre o voyeurismo e, ao assisti-lo, é impossível não lembrar de "A Janela Indiscreta", de Alfred Hitchcock. É pela janela do apartamento de Kika que a trama desfaz seu nó. É também na janeja, que a personagem misteriosa de Bibi Andersen se põe a cantar.
Mas Almodóvar vira Hitchcock do avesso e faz um jogo caleidoscópico em que se perde a noção de quem está observando ou sendo observado. Um pouco o papel da TV como espelho dentro das casas. E "Kika" é uma crítica feroz à essa chamada "janeja moderna"
O escritor picareta Nicholas (Peter Coyote) vai ao programa de Dona Paquita (interpretada pela mãe do diretor, Francisca Caballero). E segue na gravação de outro, "O Pior do dia", uma espécie de "Aqui Agora", comandado pela apresentadora e ex-psicóloga inescrupulosa Andréa Caracortada (Victoria Abril, genialmente vestida, com uma câmera na cabeça e holofotes nos seios, por Jean-Paul Gaultier).
Nesses dois programas mostrados por Almodóvar, a moral é a mesma: diz-se qualquer coisa na TV. Dos Conselhos maternais de Dona Paquita à exposição mais cruel da miséria humana de Andréa. São os dois lados de uma mesma invasão de privacidade.
Para se contrapor ao mundo mesquinho a que se assite na janela da TV, existe a maquiadora Kika (Verónica Forqué, um poço de ingenuidade e boa disposição com a vida. Ela conhece Nicholas ao maquiá-lo para o programa. E conhece Ramon (Alex Casanovas), o enteado dele, ao maquiá-lo para ser enterrado.
Ramon, fotógrafo de lingeries, ressuscita nas mãos de Kika e os dois iniciam um romance. O que ela tem também com Nicholas. E o que Nicholas tinha também com a mãe de Ramon antes de ela se suicidar e que tem agora ainda com sua melhor amiga, Amparo (Anabel Alonso). É um filme de Almodóvar.
Para criar mais clima nessa confusão, a empregada de Kika, Juana (Rossy de Palma), é apaixonada por ela. E o irmão de Juana, Paul Bazzio (Santiago Lajusticia), é um bandido famoso com poucas faculdades mentais. Todos esses personagens entram e saem do apartamento de Kika e Ramon, refazendo o que havia de melhor nas velhas comédias americanas.
Se por dinheiro, inveja, ciúmes ou uma cena inédita na TV todos se traem, a heropína Kika segue sorrindo feito boba, fiel às suas convicções. E mais um vez o proscrito Almodóvar acredita na moral (no melhor sentido, quase perdido, da palavra). Como em "Ata-me!", "De saltos altos", "Matador" e os outros.
Almodóvar cria cenas de rolar de rir (como a de sua mãe), de perder a respiração (Como a de Bibi Andersen), ou de não saber como reagir (como a do estrupo de Kika). Passa da simplicidade e doçura de Kika à violência arrojada e desumana de Andréa Caracortada sem perder o ritmo. Prepare-se.

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