São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
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Mambo, balada e bolerão

ZECA CAMARGO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pouco adianta Ryuichi Sakamoto ou Ennio Morricone. O melhor das trilhas sonoras dos filmes de Almodóvar não vem das letras grandes nos créditos iniciais, mas das composições descritas discretamente nos letreiros finais de seus filmes como "otras músicas".
É de lá que vêm as pistas para encontrar preciosidades como a da abertura de "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos": "Soy Infeliz", com Lola Beltrán. Ou ainda, o clássico reinventado "Piense en Mí", interpretado pela "roqueira" espanhola Luz Casal.
É preciso também ficar até a ficha técnica de "Ata-me!", para conferir que a canção cantada pela mãe e pela irmã de Marina (Victoria Abril) é "Canción del Alma", uma adaptação da breguérrima música original de Rafael Hernandez por Los Coyotes de Victor Abundanza.
Essas canções aparecem como verrugas nas lisas trilhas de músicos competentes como os já citados –ou mesmo nas de Bernardo Bonezzi, que trabalhou com Almodóvar em "O Que Eu Fiz para Merecer Isso?", "Matador" e "Mulheres" (um CD com esses trabalhos foi lançado na França pela Édition Sepam). O diretor parece que as inclui só para subverter o trabalho desses compositores.
Na já acidentada mistura kitsch de seus filmes, esses "momentos musicais" quase passam por naturais. Mas pode ter certeza de que o diretor tem tanto prazer em escolher essas faixas para encaixá-las no seu trabalho quanto em construir um personagem bizarro como a mulher do "galã" Ivan (Fernando Guillén), de "Mulheres".
Almodóvar deve passar horas na sua coleção de raridades para decidir que baladão cafona combina melhor com determinado "nó dramático". Horas aliás, nada vãs, porque o efeito de "Soy Infeliz" logo no início de "Mulheres" é indescritivelmente arrasador.
Provavelmente esse foi o filme que te apresentou a Almodóvar, certo? Pois então tente se lembrar da expectativa de ver um "irreverente diretor espanhol" ou "um Fellini para os anos 90" (para lembrar algumas críticas entusiasmadas da época) e de qual foi o impacto ao ouvir aqueles terríveis versos choramingões. Acredite que Almodóvar previu até isso.
Ainda nesse filme, enquanto Carmem Maura conversa com Rossi de Palma nos créditos finais, uma doida chamada La Lupe canta "Puro Teatro", com versos como "já não confiava cegamente na febre dos teus beijos". Dá para imaginar Almodóvar rindo sozinho de expor esse seu prazer particular para o público.
Entre esses seus prazeres, uma cantora aparece como favorita: a italiana (!) Mina. Bastante popular durante os anos 60 na Itália (e aparentemente na Espanha também), ela está em "Matador", atacando com "Esperame en el Cielo". E em "Salto Alto", ela ressurge na canção "Un A¤o de Amor", regravada por Luz Casal –que por sua vez empresta a voz à personagem Becky del Paramo, numa cena que é dublada por Miguel Bosé no papel do transformista Fatal (é complicado, mas dá para acompanhar, se você já entrou no raciocínio de Almodóvar).
O diretor teve que convencer Luz Casal (até então uma cantora de rock com boa fama na Espanha) a se debruçar nesse bolero e também em "Piensa en Mí", que a catapultou (junto com a cantora da música original, a mexicana Isabela Vargas) para o topo da parada espanhola durante boa parte de 92.
Essas duas canções são o exagero do exagero. Mas certamente chamam mais atenção em "Salto Alto" do que as duas elegantes faixas de Miles Davis pinçadas por Ryuichi Sakamoto.
Ennio Morricone também é um perdedor em "Ata-me!". Claro que as atmosferas que ele cria no filme são sublimes, conseguindo ampliar o fraco suspense que Almodóvar tentava construir neste trabalho. Mas quando "Canción del Alma" entra, só dá para ficar com o refrão na cabeça.
Bernardo Bonezzi se dá melhor. Aproveita bem o "espírito" Almodóvar para criar o tema instrumental de "Mulheres" ou o ainda melhor tema de "O que Eu Fiz Para Merecer Isso?". E a cena da corrida ao aeroporto (ainda em "Mulheres"), não seria a mesma sem seu toque –vale lembrar que o mambo que toca naquele táxi enfeitado no mesmo filme também é de Bonezzi.
Em "Kika", seu último filme, Almodóvar parece estar mais seduzido por estilistas do que por compositores. Pelo menos dois aparecem com destaque nos créditos iniciais (Jean-Paul Gaultier e Gianni Versace) e um nos finais (Paul Smith). Mesmo assim, o bolerão não falha: depois de uma boa trepada, a transexual Bibi Andersen dubla a excelente (e rasgadona) "Noche de Luna", originalmente gravada por Chavela Vargas. E, de quebra, o diretor ainda manda um "Mama Yo Quero" (essa mesma), cortesia de Tito Puentes.
Parece que sempre essas canções vão aparecer nos seus trabalhos. Elas estão lá como discretas iscas para o lado vulnerável-pop do público –e quase todo mundo cai. Vai dizer que você não saiu cantando "Resistire", no final de "Ata-me!"? Se não saiu, então nem valeu a pena ter assistido.

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