São Paulo, domingo, 31 de julho de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desejo é a lei de Almodóvar

BIA ABRAMO
EDITORA DA ILUSTRADA

O tema de Almodóvar é o desejo. Apesar de seus filmes se situarem a anos-luz de discussões psicanalíticas, o desejo em Almodóvar tem o significado de força da natureza –pulsão original, tão próxima da morte quanto da vida. O desejo impregna os diálogos, (des)norteia os personagens, leva situações ao paroxismo.
Para Almodóvar, o desejo iguala os homens (e as mulheres e os homossexuais e os travestis). Em seus filmes, todos têm direito de exercer o seu –talvez por isso, de seus personagens emane uma certa dignidade, mesmo que pareçam ridículos, patéticos ou desesperados.
Ser humano equivale a fazer valer a lei do desejo, custe o que custar. O desejo, em Almodóvar, tem potência para impor a lei –e a lei se faz submissa diante desse poder.
A moral do diretor espanhol troca os sinais. Em vez do desejo se dobrar à lei, é esta que nasce do desejo. Da ferocidade iconoclasta de seus primeiros filmes ao depuramento estético dos mais recentes, este é o fio condutor e única fonte legítima de criação.
A irrupção do desejo é sempre absoluta e violenta –não escolhe forma, nem gênero. Pode vir como uma celebração festiva e colorida da vida –e é assim que aparece na maioria de seus filmes–, mas muito frequentemente tangencia os tons sombrios da morte –caso de "Matador", um Almodóvar de certa forma atípico.
Os amantes assassinos
"Matador" pode ser considerado uma espécie de experiência de Almodóvar pelo trágico. Seu humor transbordante, a comicidade arrasadora são substituídos por um acento grave. A crueza, entretanto, é a mesma –o cinema de Almodóvar não perde tempo com eufemismos.
Em "Matador", sexo e morte, paixão e assassinato estão tão entrelaçados quanto os amantes que matam um ao outro no momento do orgasmo. Como as capas de toureiro que permeiam o filme, são o verso e o reverso do desejo. O erotismo está subordinado a um impulso mais forte –o de matar. A morte do outro aparece como a única forma de levar a cabo a intensidade da experiência sexual.
"Matador" é um dos únicos filmes de Almodóvar onde o gozo não vem numa explosão de alegria e humor. O gozo perfeito só pode ser companheiro da agonia da morte –um estado também de perfeição. O labirinto de paixões onde se encontram Diego e Maria, Ángel e Eva, está manchado de sangue.
As duas cenas iniciais apresentam Diego, o toureiro que abandonou a arena, mas não o desejo de matar, e Maria, a advogada que assassina seus amantes ocasionais como um toureiro dá o golpe fatal no touro. Diego se masturba enquanto assiste a cenas de mulheres sendo assassinadas. Maria seduz um homem e o mata –seu gozo solitário só é possível com um cadáver entre as pernas.
O sexo está tão imiscuído na morte que lhe empresta uma distinção de gênero: "Há sempre algo de feminino em um criminoso", diz Maria. "E há sempre algo de masculino em uma assassina", completa Diego. Maria e Diego falam de matar um ao outro como um ritual de sedução.
Eclipse
Sexo e morte dançam esse bolero, sob os olhares de Ángel e Maria –um anjo e a responsável pelo pecado original. Os dois estão envolvidos com Diego e Maria, mas excluídos do gozo supremo. Ángel, um aprendiz de toureiro (de um matador, portanto) tímido e virgem, porque seu desejo não supera seu medo e sua incapacidade de ver sangue. Eva, a namorada com quem o toureiro prefere transar quando ela finge de morta, por acreditar no poder regenerador de sua paixão.
O ritual de gozo e morte tem seu clímax durante um eclipse. Não se lamenta o duplo assassinato –tal conjunção perfeita não pode ser chorada. O desejo, para Almodóvar, é de tal forma poderoso que embeleza a tragédia. "Nunca vi alguém tão feliz", diz o delegado quando encontra os amantes mortos.

Texto Anterior: Mambo, balada e bolerão
Próximo Texto: STENDHAL; MPB
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.